Resumo

Somos professores, e se queremos que a nossa ação pedagógica concorra mais para a formação que para a instrução devemos ter na linguagem verbal e corporal um precioso instrumento de comunicação. Falamos com a mente e com o corpo e a linguagem corporal é essencial em Educação Física.

O nosso poder pedagógico exprime-se na clareza da linguagem que usamos na tessitura da teia de relações que estabelecemos com os outros, principalmente com os nossos alunos. Todo o poder que nos assiste exprime-se através da linguagem que utilizamos e no exemplo que representamos.

Barthes diz que “a língua não é reaccionária nem progressista, ela é simplesmente fascista” porque nos impõe o critério, a norma, o nexo. Nada é exterior à língua, pois a apropriação da língua é a apropriação da realidade. A linguagem corporal ainda é mais autoritária pois consubstancia o somatório das experiências globais do indivíduo numa expressão corporal pouco permeável à “arte de fuga”.

A linguagem em Educação deve ser clara embora se reconheça à partida a dificuldade em evitar a ambiguidade e a polissemia.

Ao jogarmos com conceitos como Homem, Sociedade e Educação temos forçosamente de aceitar o risco da polissemia e da imprecisão semântica quanto mais não seja por opção política ou religiosa. Se queremos escalpelizar um conceito temos de definir a priori normas de discurso partilháveis pelos interlocutores para poder haver comunicação.

É preciso elaborar regras para falar em comum; regras de discurso mental que sejam também as regras do discurso expresso. Embora tenhamos consciência de que o discurso racional já não é suficiente para explicar o mundo em que vivemos, devemos evitar a desconstrução, que é normal em poesia, mas que nos levaria inexoravelmente à incomunicabilidade. Para conseguirmos comunicar com clareza devemos estabelecer as regras de raciocínio que propiciem um discurso compreendido e aceite.

A localização semântica e axiológica do conceito Educação Física impõe a necessidade de escavar profundamente no fundamento dos conceitos.

O que é a Educação Física? É a expressão física de um conceito de educação.

Esta definição sintética por excelência, abre-nos imensas perspetivas e, por isso, teremos de cavar fundo na perscrutação dos valores que a consubstanciam.
O que é educar? Qual o objectivo da educação?

Torna-se óbvio que a criança se deve integrar o melhor possível na sociedade que é a sua progénie. Ao mesmo tempo que se trata de encontrar o já adquirido pelos antecessores, a educação deve ser prospetiva no sentido de prever o futuro e preparar a criança para um mundo em contínua transformação.

A concepção que se fizer do homem determinará o projecto de educação e o modo de o efectivar. O homem é totalmente produzido pela sociedade, e na medida da evolução das próprias ciências humanas. É pela assimilação da prática adquirida, correspondendo esta aos aspectos concretos da actividade humana, que se formam as aptidões. As aptidões que pretendemos desenvolver são as técnicas desportivas, que consubstanciam um dos empenhamentos culturais da humanidade e de extraordinária força no mundo de hoje.

Quando McLuhan afirma que os vários produtos da tecnologia, desde a roda à electricidade devem ser considerados como extensões da nossa corporalidade, com maior ênfase poderemos afirmar que a assimilação das técnicas e conteúdos das actividades físicas e desportivas são potenciações (permitem o homem ganhar espaços de si e para fora de si) do corpo individual e social do homem.

É necessário nunca perder de vista o carácter de totalidade das actividades humanas. Se uma actividade determinada tem por objectivo dominante situar o homem em relações concretas, materiais, com a natureza ou com os outros, nem por isso deixa de ter um aspecto intelectual e muitas vezes afectivo. A consciência da acção, prepara, acompanha e segue a acção. É a valorização mental e emocional da atividade humana que lhe dá um carácter de totalidade. É no respeito por esta dimensão plural que devemos fazer chegar à criança as actividades a assimilar.

Dentro do processo de aprendizagem, a especificidade física não deve levar a esquecer nem a lógica de totalidade do ensino, nem o paradigma relacional (as comunicações inter-individuais fazem parte da acção) que nos deve nortear como pedagogos. Como afirma Kant, os homens devem ser sempre usados como fins e nunca como meios.

Não devemos isolar o aspecto físico da actividade, o corpo ou o aspecto biomecânico do movimento. Deve-se romper com a compreensão tradicional e intelectualista do termo educação física, que ficou marcado com o estigma pecaminoso que a Idade Média carreou para o corpo e para as coisas do corpo.

Temos de ter coragem de dizer que a Idade Média foi um momento da história da humanidade em que a elevação espiritual, a dimensão do sagrado humano e por arrasto a sacralidade do corpo sofreram tratos de polé. De igual forma o espírito também foi maltratado, condicionado à ditadura do dogma religioso reinante. É impossível tratar bem do corpo quando a alma é vilipendiada em sevícias de confessionário que redundaram nas inquisições da nossa menoridade civilizacional. A Idade Média amarfanhou a cultura da Antiguidade Clássica, que começou com os poemas Homéricos e terminou com a queda de Roma, e reduziu o corpo a mero invólucro da alma.

Quando Tomás de Aquino (que até foi santo) reganha via Aristóteles uma dimensão mais telúrica da realidade, começa a vislumbrar-se a carta de alforria do corpo martirizado por séculos de sevícias. A Idade Média cobriu o corpo de pústulas e edemas. O

Renascimento começou a limpá-lo com óleos purificadores e fumigações dos maus espíritos que o definhavam.

O Eu é o corpo em acção e consciência em síntese indivisível. O homem e impossível de dividir em pedaços; só na mesa de anatomia quando a chama da existencialidade se apagou. O homem é sempre um uno plural, até na morte ou principalmente aí.

A Educação Física é a parte da educação geral que utiliza como meios específicos os exercícios físicos sejam desportivos ou não. A sua finalidade não se limita à cultura corporal ou à procura de uma “performance”. Acima de tudo procura-se a educação mental e afectiva, isto é, o desenvolvimento dos valores característicos do ser humano, sem nunca perder de vista o princípio da unidade psicobiológica e as influências recíprocas entre o meio e o indivíduo.

A acção da Educação Física não se deve limitar à preparação e consecução duma vida desportiva (benéfica, mas de valor relativo) mas, melhor objectivada deve preparar o indivíduo sobretudo para a vida adulta, desenvolvendo um percurso de progressiva consciencialização crítica acerca dos valores estabelecidos pela própria sociedade.

A ideia, generosa sem dúvida, de uma Educação Física que se limita a conservar a saúde ou a equilibrar harmoniosamente a atividade intelectual, traduz um desconhecimento do papel duma verdadeira educação física e uma visão estreita dos seus objetivos.

A ciência do movimento humano, qualquer que seja a sua expressão, considerada como um saber que se procura dar a cada criança, é simultaneamente actividade intelectual e material, mesmo que se subentenda que a dominante específica é física.

Não se trata de equilibrar um outro tipo de actividade. Trata-se de adquirir este saber por si mesmo e assimilar a dimensão de cultura que lhe está subjacente.

O homem expressa uma realidade plural, e é dentro do respeito pela multidimensionalidade do ser humano que todas as actividades devem ser estabelecidas.

Como se disse a Educação Física, bem como mais latamente a Educação em geral, devem possuir um carácter prospectivo, isto é, deve realizar-se visando uma projecção no futuro, compreendendo o sentido da evolução rápida do meio físico e social dos nossos dias. Inteligir o futuro é educar no tempo exacto.

A única via educativa segura deve procurar, antes de tudo, uma vasta cultura geral, a partir das actividades corporais, o que facilitará as adaptações biológicas, mentais, afectivas e sociais.

Devemos evitar circunscrever-nos às metodologias fechadas, bem como aos dogmas cristalizantes que dificultam a evolução. A Educação Física deve estar baseada na ciência e evoluir com ela. Este espírito científico conduz-nos primeiramente à pesquisa de uma informação universal tão vasta quanto possível. A ciência não tem fronteiras nem mestres infalíveis.

As actividades a propor no âmbito da Educação Física, devem ter, na vida social, uma finalidade histórica determinada, uma significação objectiva no processo de desenvolvimento da sociedade. Que melhor proposta pedagógica para a escola que a assimilação do fenómeno desportivo?

Desporto como mensagem vivificante e não como discurso fático mistificador da sua essência cultural.

O desporto como matéria de ensino deve procurar o ponto ómega da sua realização social (que abaixo mencionamos), mesmo que estejamos conscientes da dimensão utópica que tal projecto acarreta.

A consciência da finalidade social do ensino deve acompanhar a par e passo o processo de aprendizagem apontando para os alvos axiológicos que formam as sociedades livres e democráticas. É necessário ensinar a sociedade à escola, mas projetando-a com um elán transformador no sentido de potenciar a dimensão social do mais profundo humanismo.

As atividades físicas educativas devem contribuir para preparar a criança para o trabalho produtivo, numa ótica projetada no futuro e devem conduzir às atividades físicas recreativas, que são as que contribuem fundamentalmente para o desenvolvimento do homem como fim em si e para o desenvolvimento da sociedade como um todo.
Temos consciência que o meio mais eficaz que possuímos como educadores para atingir os desideratos atrás expostos, é o Desporto.

O desporto como extensão e potenciação da corporalidade humana não poderá mais ser considerado como actividade marginal, marcado pelo estigma da competição exacerbada e desumanizante. Portador de uma vocação estética e moral que ultrapassa largamente o domínio físico onde se exprime, o desporto deveria assegurar pelo equilíbrio da personalidade e a formação do carácter, a defesa do humano numa civilização mecânica cada vez mais opressiva.

O desporto, pode ser um campo privilegiado do homem se encontrar consigo próprio, com os outros, numa atmosfera de convivialidade em que a festa, o humor, o riso, o aplauso, o grito e a alegria e inclusive a esporádica expressão desmedida, sejam formas socializantes e eticamente aceitáveis de sermos mais felizes.

É esse paradigma de desporto que se deve constituir como a referência da nossa práxis profissional. O desporto não mais como espectáculo de voyeurismo, mas sim como assimilação vivencial, sentida, única de corpos felizes em ação e movimento.

A assimilação estética de um espectáculo desportivo será tanto mais limpa dos miasmas da alienação quanto maior for a formação e vivências desportivas do espectador. Ao formarmos seres com vivências e cultura desportivas ajudamos a desenvolver a antítese do homem-massa. O homem livre rejeita as grilhetas quaisquer que elas sejam, pois tem consciência de como elas nascem. Mesmo que por vezes nos alienemos em efervescências lúdricas e lúbricas, fazê-lo conscientemente atenua a alienação que queremos que seja mero epifenómeno de uma realidade cultural mais vasta.

E o esforço hermenêutico para nos localizarmos no desporto e na sua axiologia será o alimento que nos ajudará no caminho da procura do sentido da própria vida. Mas temos de ter em atenção que o professor pode muito, mas não pode tudo. Não podemos cair no voluntarismo pedagógico que acredita no poder transformador absoluto do professor. O poder não se origina nunca de uma decisão arbitrária no vértice, mas vive de mil formas moleculares de intervenção social. O nosso poder emerge, fundamentalmente, do exemplo que somos. Assiste-nos o direito e o dever de sermos lúcidos, corajosos e determinados. Não podemos ser meros tecnocratas com uma visão reducionista da educação. Subjacente ao programa de Educação Física que orienta a nossa práxis pedagógica, está um conceito básico de Homem, de Sociedade, de Educação. Todos os meios pedagógicos e didácticos devem estar em consonância com a força referencial desses conceitos.

José Augusto Santos

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