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Este texto é parte das pesquisas e estudos desenvolvidos no GETEMHI, isto é, "Grupo de Estudos em Trabalho, Educação e Materialismo Histórico". Em aspectos gerais, pode-se afirmar que o GETEMHI tem buscado analisar o trabalho do professor de Educação Física, tanto no campo escolar como nos campos não-escolares, levando em consideração as modificações ocorridas no mundo do trabalho, provenientes da gerência da crise do capital desde a década de 1970.

O desmoronamento das bases que sustentaram a chamada "era de ouro" (HOBSBAWN, 1994) do capitalismo iniciou um novo momento na história econômica e política do mundo; momento que é marcado por um processo de reordenamento do capital como tentativa de criar, em novas bases, as condições da expansão capitalista (JINKINGS, 2004). Esse processo foi impulsionado a partir da década de 1970 pelo colapso do modelo fordista-Keynesiano e resultou na formação de "um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza" (HARVEY, 1994, p. 119).

Conforme explica Antunes (2000), embora a crise do fordismo e do Keynesianismo tenha sido a expressão fenomênica de uma crise estrutural profunda do capital, a resposta a esse fato se deu apenas em nível superficial, isto é, sem transformar os pilares essenciais que sustentam o modo de produção capitalista. Dessa forma, como tentativa gerenciar a sua própria crise,
"iniciou-se um processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Thatcher-Reagan foi expressão mais forte; a isso se seguiu também um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores." (ANTUNES, 2000, p.31)

Esse processo de reestruturação da produção e do trabalho resultou no estabelecimento da acumulação flexível - ou toyotismo - em substituição ao fordismo. Enquanto este último, no que diz respeito ao processo de trabalho, apresentava produção em massa de bens homogêneos, uniformidade e padronização, grandes estoques, testes de qualidade ex-post e integração vertical; o toyotismo, adotando a produção no modo just-in-time, apresentou outras características, como produção em pequenos lotes e sem estoque, produção flexível, controle de qualidade integrado ao processo e integração (quase) vertical (SWYNGEDOUW apud HARVEY, 1994).

Em relação especificamente ao trabalho, a produção fordista apresentava características como realização de uma única tarefa pelo trabalhador, alto grau de especialização de tarefas e organização vertical do trabalho. Com o toyotismo, porém, o trabalhador passou a desempenhar múltiplas tarefas, as quais perderam o alto grau de especialização presente no fordismo. Além disso, no modelo da acumulação flexível, estruturou-se uma organização mais horizontal do trabalho (SWYNGEDOUW apud HARVEY, 1994).

Sob o ponto de vista capitalista, a reestruturação produtiva que introduziu a acumulação flexível, substituindo o fordismo pelo toyotismo, fez emergir a necessidade de um trabalhador de novo tipo, munido das novas competências exigidas para o trabalho abstrato: não mais o executor de tarefas repetitivas e segmentadas, do padrão taylorista/fordista, mas o possuidor de novas capacidades, tais como: abstração, decisão, facilidade de trabalhar em equipe, comunicabilidade, resolução de problemas, responsabilidade pessoal sobre a produção, conhecimentos gerais e técno-tecnológicos como língua inglesa e informática (NOZAKI, 2004).

No entanto, para formar esse trabalhador de novo tipo, fez-se necessário um novo projeto de formação humana. Daí o capital utilizar a educação como instrumento para gerenciar sua crise.

No interior do projeto pedagógico contemporâneo de formação humana para a gerência da crise do capital, algumas disciplinas passaram a assumir posição de maior importância para a formação das competências almejadas, enquanto outras foram secundarizadas.

Ao direcionar o olhar para o posicionamento da Educação Física no interior desse projeto, é possível perceber que essa disciplina tem sido secundarizada enquanto componente curricular, já que não apresenta na sua forma hegemônica - enquanto disciplina reprodutora de movimentos - a mesma importância que outras disciplinas, consideradas estratégicas para a formação das competências almejadas pelo capital (NOZAKI, 2004). Estudos que analisam a importância da prática pedagógica da educação física na escola, como os já apontados por Nozaki (2004) - vale dizer, os estudos de Jeber (1996) e de Andrade (2001) - evidenciam essa afirmação. A seguir, com intuito de evidenciar ainda mais a secundarização da educação física no projeto de formação humana para o capital, analisar-se-á o estudo de Carvalho (2006), o qual trata da representação social do papel da educação física na escola a partir dos professores e professoras das outras disciplinas.

No estudo de Carvalho (2006), foram entrevistados vinte e cinco professores(as) da Educação Infantil e do Ensino fundamental de três escolas municipais da cidade de Juiz de Fora. Uma das conclusões apontadas pelo o autor é de que a representação dessas pessoas sobre o papel da educação física é multifacetada. Carvalho (2006) mencionou que cinco representações detectadas compuseram o núcleo central de sua investigação. São elas: entreter/brincar/recrear; auxiliar as outras disciplinas; socializar; exercitar/treinar/ensinar esportes; desenvolver o aspecto motor.

Apesar de Carvalho (2006, p.116-117) afirmar que "a representação do papel da Educação Física pode ser diferente de seu papel assumido e praticado no dia a dia", as conclusões a que chega o autor são instigantes para pensarmos o posicionamento da educação física no interior do projeto de formação humana para o capital.

Com relação ao papel percebido por Carvalho (2006) de entreter/brincar/recrear, prevalece, sempre segundo o autor, o entendimento de que a Educação Física pensada no interior desse papel não tem conseguido ultrapassar a condição unicamente recreacionista, que pode levar a disciplina a não se diferenciar do momento do recreio.

Carvalho (2006) também percebeu que os(as) professores(as) das outras disciplinas desconhecem ou possuem uma noção equivocada do saber a ser trabalhado na Educação Física. O que se mostra como dado marcante, porém, é o fato de que o reconhecimento, por parte dos entrevistados, da especificidade da educação física parece não ser capaz de efetivar sua valorização; pelo contrário: tende a situá-la como menos importante. Nas palavras de Carvalho: observamos o desconhecimento dos professores de outras disciplinas quanto ao saber a ser tratado pela Educação Física, ou mesmo uma noção parcialmente equivocada em relação a este saber. E ainda, quando reconhecida tal especificidade essa é colocada como menos importante. (CARVALHO, 2006, p.117, grifos meus)

Outro ponto relevante diz respeito ao papel de auxiliar as outras disciplinas. Carvalho (2006) identificou discursos que colocam a Educação Física no papel de suporte às outras disciplinas. Esses discursos - dos professores e professoras das outras áreas - envolviam colocações como as do tipo: "incorporar o nosso conteúdo", "auxiliar na memorização", "ajudam nas outras disciplinas", "ajuda até os professores de sala se aula". Algumas colocações identificadas por Carvalho como parte componente do discurso que atribui à Educação Física o papel de auxiliar das outras disciplinas, tais como as mencionadas a seguir, parecem situar a Educação Física como disciplina folgadora: "alívio das matérias", "recarregar as baterias para a criança aprender mais". De uma forma ou de outra, esses discursos parecem situar a Educação Física como disciplina secundária.

Carvalho (2006, p.118) também identificou na escola a existência de "uma rígida hierarquia dos saberes", a qual coloca "num patamar inferior as disciplinas dos saberes periféricos - menos importantes, com menos status -, (...) ligadas à dimensão corporal", onde, segundo o autor, se insere a Educação Física.

As reflexões e estudos que vêm sendo desenvolvidos no GETEMHI nos permitem afirmar que o fato de a Educação Física se apresentar como disciplina marginalizada, quando comparada a outras disciplinas curriculares da escola, pode ser entendido como expressão fenomênica da sua própria inserção no projeto contemporâneo de formação humana para a gerência da crise do capital, voltado à formação do trabalhador de novo tipo. Adotando como referencial o Materialismo Histórico, temos buscado ir além da apreensão fenomênica. O intuito é de tentar captar a essência do fenômeno; para tanto, em nossos estudos, temos buscado discutir os condicionantes concretos que mediam o fenômeno, que, no caso do presente trabalho, é a marginalização da Educação Física frente a outras disciplinas curriculares.

Para ampliar as reflexões sobre as mediações que integram a Educação Física ao projeto pedagógico dominante de gerência da crise do capital, buscou-se analisar entrevistas realizadas com professores e professoras de Educação Física de uma escola privada da cidade de Juiz de Fora/MG. Vale dizer que, no presente trabalho, adotaram-se outros nomes com o intuito de não expor os nomes verdadeiros dos entrevistados.

No colégio analisado, concebido para atender a classe burguesa e as camadas mais altas da classe média, a Educação Física e/ou seus conteúdos da cultura corporal - como esporte, dança, ginástica - são oferecidos como um algo a mais, de modo a se tornarem um plus da formação oferecida.

No atual estágio da sociedade regulada pelo capital, em que inclusive a educação é oferecida como mercadoria, as escolas privadas - assim como as outras empresas - se inserem num processo de concorrência e lutam para "abocanhar" recursos provenientes de seus consumidores. Dessa forma, a escola analisada parece fazer uso da reprodução do modelo dominante das manifestações corporais dos meios não-escolares para evidenciar a ampla infra-estrutura que possui e, assim, mostrar que, em seu interior, a formação oferecida apresenta um plus: um algo a mais do que é oferecido comumente nas escolas. Para tanto, o colégio conta com um espaço destinado às práticas corporais com cerca de 22.000 m², onde constam dentre outros: quadras poliesportivas, piscinas, salões de ginástica e dança, ginásio coberto e campos de futebol. Além disso, há variedade de recursos para que as atividades sejam realizadas, como, por exemplo: colchões, plintos, raquetes, cones, bolas oficiais de variados esportes etc. Essa infra-estrutura é utilizada tanto para a Educação Física - enquanto componente curricular - como para as escolinhas.

O professor Rivaldo explica que, para a Educação Física, que é componente curricular desta escola desde o início da educação infantil ao 3º ano do ensino médio, foram criados três eixos de trabalho: (1) esportes, "do futebol ao atletismo" e atividades aquáticas; (2) atividade física e; (3) saúde. Mas, novamente conforme Rivaldo, o colégio ainda oferece "como atividade extra classe, atividade extra curricular, as escolinhas". Sobre isso, diz ele:

Nós temos a nossa escolinha que acontece a mais de 30 anos, que é pioneira na cidade e tudo mais; a nossa escolinha oferece alguns esportes principalmente para crianças abaixo de 10 anos, então o que ela oferece: o balé, a natação, o futsal, o futebol de campo, o vôlei, o handebol, o basquete [e a dança]. (professor Rivaldo)

Segundo o professor Jequié, a variedade de atividades oferecidas pela escola apresenta-se como um facilitador para os pais. Nas suas palavras:

A criança entra aqui; quase que, por pouco, o colégio, é quase - tá sendo quase - um internato. Se você quiser a criança fica aqui o dia inteiro, então facilita muito [para] os pais: os pais podem buscá-los mais tarde. (professor Jequié)

No entanto, as atividades extra-curriculares oferecidas pela escola são realizadas mediante a cobrança de mensalidades. Se por um lado a participação na escolinha requer pagamento por parte do(a) aluno(a), a participação dos alunos e alunas nas "equipes esportivas", que representam a escola nas competições, não requer pagamento de mensalidade; "basta" serem selecionados para compor a equipe, que é restrita aos educandos matriculados na escola.

Outro ponto a ser mencionado é que as mercadorias apresentadas como um plus da formação oferecida pela escola não se destinam apenas aos alunos e alunas matriculados no colégio, pois conforme afirma o professor Augusto: "a escolinha é aberta à comunidade, em geral, de Juiz de Fora". No mesmo sentido, diz Taís: a "escolinha não é visada só para os alunos do colégio, mas pra população em geral".

Nesse ponto, tomo a liberdade de acrescentar algo: tais escolinhas não são abertas à população em geral, mas apenas àqueles que podem pagar por tal serviço e, esse fato tem explicação. Busco-a na idéia de Nozaki (2004): atualmente, esporte, dança, luta, jogo aparecem institucionalizados como produções culturais, mas assim como qualquer produção no interior da relação capital, trata-se de produções apartadas dos seres que a produzirem e, além do mais, tornadas mercadorias para circular nos meios em que possa se realizar.

É possível afirmar que, na escola analisada, a Educação Física não só é valorizada como um artigo de luxo, como também parece obter mais reconhecimento do que o reconhecimento que lhe é dado em outras instituições, vale dizer: àquelas que não são destinadas à classe burguesa e às camadas mais altas da classe média. O professor Arnaldo, por exemplo, questionado sobre o reconhecimento que a escola dá à Educação Física, afirmou: "se comparado às instituições públicas, esse reconhecimento é muito bom". No entanto, ainda assim, a Educação Física parece assumir o posto de disciplina secundária, quando comparada a outras disciplinas curriculares consideradas mais importantes.

O colégio parece não se preocupar com a opção pedagógica dos(as) professor(as) nem com o trabalho que estes(as) realizam no seu dia a dia; a preocupação parece centrar-se apenas no fato dos educandos terem a Educação Física na perspectiva esportivista, o que pode reforçar um esvaziamento pedagógico da disciplina, sobretudo porque sua área de conhecimento - a cultura corporal - parece subordinar-se ao esporte. Como diz o professor Augusto,
a gente vê que a escola, de um modo geral, ela não quer saber da sua opção pedagógica, do trabalho que se faz no dia a dia da escola (...) ela se interessa que o aluno tenha a educação física dentro daquela perspectiva esportivista (professor Augusto).

Em termos de importância, e voltando especificamente à questão do reconhecimento da educação física [neste colégio], eu acredito que seja mais avançado, se é que a gente pode falar assim, do que as outras escolas que eu pesquiso e que já trabalhei. Mas, ainda assim, deixa a desejar frente a um ideal de reconhecimento e conteúdo da educação física, que é a cultura corporal. (professor Augusto)

Em diversos momentos, os(as) professores(as) afirmaram que o esporte exerce uma influência marcante na Educação Física, devido, sobretudo, à tradição esportiva da escola. Tanto o é, que o professor Augusto afirma que
a escolinha sempre foi mais reconhecida [do que a própria educação física oferecida como componente curricular]. Pela relação que ela tem com o esporte, (...) ainda mais pela tradição do colégio e pela ação da mídia. Então a escolinha, ela chega a ser mais reconhecida pelos pais, vamos falar da comunidade escolar de um modo geral: os pais, professores de outras áreas etc (...) a educação física escolar ainda parece pra essas pessoas, no meu modo de entender, ela parece ser vista como uma informalidade muito grande. Uma falta de compromisso pedagógico muito grande. Eu entendo assim. (professor Augusto)

Outro ponto que parece evidenciar a secundarização da Educação Física frente a outras disciplinas da escola pode ser percebido a partir de outra fala do professor Augusto, quando questionado sobre o reconhecimento da Educação Física na escola. Apesar de compreender que o reconhecimento que a referida escola dá à Educação Física é maior do que o das outras escolas, ele afirma que tal reconhecimento, porém, ainda não é igual ao que é dado a outras disciplinas. Além disso, o professor Augusto ainda afirma que a educação física é vista como auxiliar dos outros conteúdos. Diz ele:

acho que aqui no Colégio se interessa[m] mais [pela educação física] que nas outras escolas, mas, ainda assim, não é como as outras disciplinas são vistas, em termos de importância, com seu conteúdos específicos. Muitas vezes a educação física é vista como auxiliar dos outros conteúdos. A gente percebe isso, tipo assim, ah, o professor de educação física pode ajudar a gente aqui. (...) a gente vê aquela coisa da educação física ajudar as outras [disciplinas] e a educação física não ser ajudada pelas outras. (professor Augusto)
Se por um lado, na escola analisada, a Educação Física mantém-se secundarizada frente a outras disciplinas, essa secundarização parece se dar apenas em caráter pedagógico, talvez pela forte influência do paradigma da aptidão física.

O presente texto parece reforçar o que Nozaki (2004) havia evidenciado: a forma hegemônica da Educação Física, concebida como disciplina reprodutora de movimentos, perdeu importância no projeto de formação humana para o capital, sendo, dessa forma, desvalorizada, relegada à categoria de disciplina de segundo plano. Por outro lado, ainda em conformidade com Nozaki (2004), nas escolas concebidas para atender a classe burguesa e as camadas mais altas da classe média, como é o caso da escola analisada, a educação física é valorizada, pois vem sendo oferecida como um algo a mais à formação oferecida.

Obs. O autor, professor Leonardo Docena Pina é mestrando em educação no PPGE da UFJF e bolsista da CAPES

REFERÊNCIAS

  • Antunes, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ed. São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2000.
  • Carvelho, Fernando Luis Seixas de. O papel da Educação Física Escolar representado por professores e professoras de outras disciplinas. Dissertação. (Mestrado em Educação). Juiz de Fora: Faculdade de Educação, UFJF, 2006.
  • Harvey, David. Condição Pós-Moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 4ed. São Paulo: Loyola, 1994.
  • Hobsbawn, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: companhia das Letras, 1994.
  • Jinkings, Nise. As formas contemporâneas da exploração do trabalho nos bancos. In: ANTUNES, Ricardo; SILVA, Maria Aparecida Moraes (orgs.). O avesso do trabalho. São Paulo: Expressão popular, 2004.
  • Nozaki, Hajime Tackeuchi. Educação Física e o reordenamento do mundo do trabalho: mediações da regulamentação da profissão. Tese (Doutorado em Educação). Niterói: Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, 2004.