Integra

 Educação Física Escolar como atitude filosófica


 Não poderíamos iniciar uma discussão sobre Educação Física Escolar, sem que primeiramente a entendêssemos relacionada à Escola, ou seja, a existência do espaço físico e/ou institucional chamado escola, é a condição primeira para a existência de disciplinas escolares, como é o caso da Educação Física. Essa escola, tem por objetivo preparar os indivíduos para a vida em sociedade, ao mesmo tempo que desenvolve suas aptidões individuais.


 Mas a escola que conhecemos hoje, é na verdade, produto dos séculos XVIII e XIX, quando começa a florescer a idéia da necessidade de educação pública e obrigatória para todas as pessoas. Nesse período, "pós Revolução Francesa", a cultura capitalista impõe à ciência um papel de destaque na construção da vida moderna, e com isso, "a educação deixa de refletir apenas o valores religiosos, como no tempo da sociedade feudal, para ter a ciência como base" (Meksenas, 1988, p. 28).


 Devido ao fato do capitalismo ser contraditório em sua própria essência(2), sempre passou por períodos de desequilíbrio sócio-econômico. Essa situação, de constantes crises, favoreceu o nascimento da Sociologia, ciência que inicialmente preocupava-se em restabelecer a frágil ordem capitalista. A partir desse momento, são muitos os pensadores que passam a refletir sobre a nova ordem social, tentando entendê-la em sua essência.


 No entanto, três pensadores merecem destaque, devido ao fato de suas teorias tornarem-se as bases de interpretação da sociedade capitalista, e por essa razão, são considerados clássicos na sociologia. Estamos falando de Émile Durkheim (1858-1917) com sua Sociologia funcionalista, Karl Marx (1818-1883) com a Sociologia crítica, e Max Weber (1864-1920) com sua Sociologia como ciência interpretativa. Mesmo as breves referências desses "sociólogos clássicos" à educação, acabaram por ser contribuições teóricas muito importantes para os sociólogos contemporâneos, a ponto de se especializarem no estudo da educação e criarem o que conhecemos como Sociologia da Educação.


 Apesar da importante contribuição da teoria sociológica de Durkheim, que acreditava não ser tarefa da educação revolucionar a sociedade capitalista, mas antes reproduzir os valores morais dessa sociedade, garantindo a integração de seus membros através da reforma dos aspectos sociais considerados negativos, cabendo à escola garantir um "saber comportar-se" socialmente, e da análise de Weber, para quem a função social da educação era servir de marca de identificação de um grupo de status, bem como de critério de seleção, é em Marx - apesar de não encontrarmos em sua vasta obra, um livro específico que trate da educação - que encontramos uma concepção sobre a sociedade capitalista que nos permite pensar criticamente a educação e a escola.


 Seguindo as "pistas" deixadas por Marx, muitos autores, combinando a teoria marxista com outras fontes, construíram suas próprias teorias, reforçando a idéia de que em uma sociedade desigual como a capitalista, devido à exploração de uma classe social por outra, o processo educativo que se dá dentro da escola também é desigual, pois a escola, sendo uma instituição controlada pelo Estado - representante da classe dominante - reproduz as desigualdades sociais deste mesmo Estado.


 Nas teorias de cunho marxista, a compreensão de que a educação está estreitamente vinculada às condições históricas da sociedade, nos mostra que a escola, dentro de uma sociedade cujo modelo econômico baseia-se no capitalismo, funciona como um aparelho ideológico deste Estado, e como todos os aparelhos ideológicos de estado (AIE), tem por objetivo, "a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalistas" (Althusser, 1992, p. 80).


 Nessa estrutura , a educação não acontece de forma espontânea na realidade social; ela é regulamentada e deve acontecer dentro de um conjunto de regras definidas e impostas pelo Estado. Assim, a Educação Física dentro do contexto escolar, é apenas um apêndice desse aparelho ideológico, e portanto, como todas as disciplinas que compõem a grade curricular, tem todo o seu potencial de reprodução das ideologias capitalistas legitimado pelo Estado, através da legislação destinada a regulamentar sua prática


 A percepção de que o objetivo contido nas legislações específicas da Educação Física é reforçar e legitimar a ideologia capitalista é tarefa difícil, pois a falta de consciência crítica, impede o conjunto, quase total, do professorado de Educação Física, de compreender as "insanidades pseudofilosóficas" da intelectualidade, que enevoam e impossibilitam uma certa intimidade com os "saberes" próprios às mais diversas áreas do conhecimento humano, e que certamente, o conduziria ao compromisso político com outro modelo de sociedade.(Carvalho, 1991, p.20)


 Ou seja, em outras palavras, poderíamos dizer que os professores de Educação Física, formados em cursos de graduação que na sua maioria priorizam o aspecto técnico (3), enfatizando o ensino das disciplinas "ditas" específicas ou profissionalizantes (Anatomia, Fisiologia, Cinesiologia, Basquetebol, Voleibol, etc), têm relegado a segundo plano em sua formação, o ensino das disciplinas que fazem parte do campo das ciências humanas (4) (Psicologia, Sociologia, Economia, Antropologia, História, etc). O "descompromisso" com o ensino destas disciplinas na graduação do professor, dificulta o seu entendimento da relação Educação Física/Escola/Sociedade, impedindo-o de perceber-se como agente portador da "função hegemônica burguesa". A conseqüência dessa situação, é a transmissão, através das aulas de Educação Física, de "valores significativos da fração da sociedade que detém o controle sobre os meios de produção" (Carvalho, 1991, p.26).


 Portanto, longe de formar cidadãos críticos, autônomos e conscientes de seus atos - objetivos que acredito deveríamos buscar atingir - a Educação Física na Educação Básica, também não consegue obter resultados, na tentativa de aprimorar ou aproveitar as potencialidades físicas de seus alunos, trazendo-lhes algum benefício fisiológico (6). Com a estrutura funcional que encontramos em nossas escolas, nos dias de hoje, onde nas aulas de Educação Física trabalha-se prioritariamente o movimento corporal, não se consegue justificar, de forma convincente, a presença obrigatória desta disciplina na grade curricular.


 Urge nos libertarmos das "amarras ideológicas" que permeiam o significado desta disciplina, e nos faz acreditar, que ela tem como meta principal, trabalhar apenas o movimento corporal, situação que já vimos , representa um esforço inócuo (do ponto de vista das classe trabalhadora) na estrutura escolar atual. Assim, vejo como a solução mais acertada, ao invés de ficarmos conjecturando possíveis objetivos específicos para a Educação Física Escolar, identificá-la, na verdade, com o objetivo geral de uma educação revolucionária: "reeducação dos homens pela transformação da sua mentalidade, da sua atitude para com o trabalho, a sociedade e a família" (Carvalho, 1991, p. 95), ou seja, revolucionar a consciência do homem capitalista e o seu comportamento social, para formar o indivíduo crítico, autônomo e consciente de seus atos.


 E como faríamos isto através da Educação Física? Antes de tentar uma possível resposta, recordemos uma situação pela qual, certamente, muitos de nós passamos. Durante os 4 anos finais do ensino fundamental e os 3 anos do ensino médio, o aluno tem aulas de Educação Física, e ao final destes 7 anos, tem a triste constatação de que não aprendeu conteúdo algum sobre essa disciplina. Não tem uma noção mínima de como montar um plano de condicionamento físico, por mais rudimentar que seja; não conhece o seu corpo, e muito menos os exercícios físicos que poderia fazer para trabalhar cada segmento corporal; não tem uma noção básica de suas necessidades orgânicas durante o exercício; ou seja, sete anos "estudando" Educação Física, sem que seja trabalhado um mínimo de autonomia no aluno.


 Quanto à questão da formação do indivíduo, crítico e consciente de seus atos, o que temos como produto destes 7 anos de escolaridade em contato com a Educação Física, são pessoas que acreditam que os grandes atletas conquistaram seu "lugar ao sol" apenas por seus esforços pessoais, como se a sociedade capitalista propiciasse oportunidades iguais para todos; acreditam na neutralidade política do esporte de alto nível, como se o mesmo tivesse por objetivo apenas levar diversão, mascarando sua real finalidade de alienar as pessoas para os conflitos entre as classes; acreditam no patriotismo estereotipado nas competições internacionais, quando por exemplo, vemos operários e empresários se "unirem" para torcer por uma seleção brasileira, como se tivessem os mesmos interesses político-sociais; e para piorar a situação, ainda vemos representantes políticos (vereadores, deputados...) serem eleitos, apenas por terem sido grandes atletas, como se sua capacidade política fosse proporcional à sua condição física.


 Se todos estes tópicos citados anteriormente como exemplo, fazem parte do "universo" da disciplina Educação Física, e dificilmente poderiam ser bem trabalhados por professores de outras disciplinas - até mesmo pela falta de domínio deste conteúdo específico - por que a proposta de aulas expositivas de Educação Física é tão hostilizada pelos professores da área ?


 A acusação mais freqüente, feita pelos professores de Educação Física em relação à exposição oral, é o fato de que ela "provoca o cansaço e o bocejo dos alunos, calados e passivos, ouvindo muito pouco, do muito que o professor lhes fala, loucos para que o fim da aula os liberte do martírio" (Lima, 1986, p. 6). Mas estes "acusadores", esquecem-se de que a "principal meta de uma aula não é divertir, mas ensinar, não é distrair, mas concentrar a reflexão e possibilitar o diálogo, senão durante, pelo menos após ela" (Ibid, p. 9).
Na verdade, o que faz uma aula ser "chata", não é o conteúdo da disciplina em si (Matemática, Geografia ou Educação Física, por exemplo), nem o espaço físico onde ela é ministrada (quadra de esporte ou sala de aula), mas a postura do professor durante a aula.

 Uma aula sobre um assunto relativamente difícil ou complicado, pode tornar-se muito agradável se o professor souber conduzi-la com criatividade, com humor.... "O concreto da realidade é mais palpável através do humor e do sentimento, do que pela estrutura mecânica do programa. O humor ajuda a tornar real o momento do conhecimento, uma qualidade que pode reverter o roteiro artificial da escola" (Shor, 1986, p. 195). Sendo assim, uma aula dentro de sala, pode ser tão agradável para o aluno, quanto um jogo de futebol ao ar livre, por exemplo.


 Por todo o exposto até o momento, torna-se necessário, tentarmos entender o processo de resistência, por parte do próprio professor da disciplina, contra a inclusão em sua prática docente, de outras alternativas didáticas, diferentes das aulas práticas de movimentos corporais. Será que o fato da Educação Física ser mostrada como forma de adestramento corporal, nos próprios textos legais, não é suficiente para percebermos o quanto esta prática docente é manipulada pelas classes dominantes, a fim de que seus interesses ideologizadores sejam atendidos ? Será que o discurso utilizado pelos defensores das aulas práticas, baseadas em movimentos corporais - mesmo que esta aula seja apenas uma vez por semana - não está "ancorado" em teorias também já ideologizadas pela burguesia ?


 Obs. O autor é doutorando em Educação/UFF; graduado em Educação Física, Pedagogia e Filosofia.


 Notas:


 (1) . "A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido." (Chaui, 1995, p. 12).


 (2) . De acordo com Marx, a contradição fundamental do capitalismo, é a contradição entre o caráter cada vez mais social das forças produtivas (forças que resultam da combinação dos elementos do processo de trabalho = força de trabalho ou energia gasta + meios de produção ou meios de trabalho e matéria prima) e o caráter privado cada vez mais concentrado da propriedade dos meios de produção (todos os objetos materiais que intervém no processo produtivo).


 (3) . "...mesmo os currículos preocupados em vencer as concepções do professor instrutor, executante ou atleta, continuam incluindo na formação geral, desportos como andebol, basquetebol, futebol de salão e voleibol, ainda que tenham o cuidado de apresentá-los com denominações como ‘Ensino de Basquetebol’, ‘Ensino do Voleibol’ (UFC), ‘Metodologia do Ensino do Andebol’, ‘Metodologia do Ensino do Futebol’ (UERJ)." (Faria Jr., 1992, p. 236).


 (4) . "Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de conhecimento, a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto." (Chaui, 1995, p.271).


 (5) . Cf. Claudio Barbosa, Educação Física Escolar: as representações sociais, cap.1.


 (6) . Cf. Claudio Barbosa, Educação Física Escolar: as representações sociais.


 Referências bibliográficas


 Althusser, LOUIS. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
Barbosa, Claudio  L. de  Alvarenga. Educação Física Escolar: da alienação à libertação. Petrópolis: Vozes, 1997.
___________. Educação Física Escolar: libertando-se da caverna.. Revista Sprint Magazine. Rio de Janeiro, n. 99, p. 7-9, nov/dez 1998.
___________. O conceito de diversão no contexto escolar: uma abordagem ética. Revista Tecnologia Educacional. Rio de Janeiro, v. 29, n 148, p. 32-37, jan/fev/mar, 2000.
___________. Educação Física Escolar: as representações sociais. Rio de Janeiro: Shape, 2001.
Cavalcanti, Katia B. Esporte para todos: um discurso ideológico. São Paulo: Ibrasa, 1984.
Carvalho, Mauri DE. A miséria da Educação Física. Campinas: Papirus, 1991.
Chaui, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995.
Faria JR., Alfredo G. Perspectivas na formação profissional em Educação Física. In: Moreira, W. Wey (org). Educação Física e esportes: perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus, 1992.
Harneker, Marta. Para compreender a sociedade. São Paulo: Brasiliense, 1990.
Lima, Balina B. A exposição oral no ensino superior. Temas em elaboração. Niterói, n. 01, p. 7-14, dez, 1986.
Luckesi, Cipriano C. Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 1994.
Marcondes, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
Meksenas, Paulo. Sociologia da educação. São Paulo: Loyola, 1988.
Mochcovitch, Luna G. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1992.
Rodrigues, Alberto T. Sociologia da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
Sautet, MARC. Um café para Sócrates: como a filosofia pode ajudar a compreender o mundo de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
Severino, Antonio J. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU,1986.
___________. Filosofia. São Paulo: Cortez, 1994.
Shor, Ira E Freire, Paulo. Medo e ousadia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Soares, Carmen L. et alii. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.