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É sempre bom lembrar que os mitos foram ao longo do tempo uma forma de explicar o mundo. Mito pra valer não é confundido nem com mentira, nem com meias verdades, nem tampouco com charlatões.

Trabalhar com mitos significa olhar para o ser humano e as coisas do mundo pela ótica particular do imaginário. Ou seja, as mazelas humanas, a dimensão do tempo, a finitude e os desafios do cotidiano ganham intensidade e brilho próprios.

Diante dos acontecimentos desta intensa semana o mito de Prometeu não sai da minha cabeça. Nele estão as marcas da onipotência, da finitude, do abuso de poder e a solidariedade.

Diz o mito que o titã Prometeu (aquele que vê antes) foi o primeiro criador dos humanos e, também, seu benfeitor. Nas querelas com os imortais o titã sempre procurava um jeito de proteger sua criação. Em uma das investidas de Zeus a humanidade foi privada do fogo, símbolo da consciência. E mais uma vez Prometeu enfrentou o poder do maioral e roubou-lhe uma centelha do fogo celeste repartindo-o com os humanos levando o senhor do Olimpo a jurar vingança.

As querelas olímpicas são efetivamente demasiadamente humanas e podem explicar muito do que acontece na vida em sociedade.

Usando de seu poder Zeus prendeu Prometeu com grilhões poderosos a uma rocha. Todos os dias uma águia devorava seu fígado que se regenerava à noite. O sofrimento teria durado toda a eternidade não fosse o centauro Quíron, ferido mortalmente, trocar a sua imortalidade pelo sofrimento de Prometeu.

Ou seja, mesmo os males que parecem eternos, impostos ou escolhidos, pela força de uns ou pela sabedoria de outros, um dia acabam.

Faz parte desse mito uma figura criada pelos deuses para a ser a perfeição do tormento. Pandora é dada a Epimeteu (aquele que aprende e vê depois), irmão de Prometeu, como presente e junto com ela um jarro. Zeus pretendia com isso não apenas atacar o titã, mas principalmente submeter sua criação, a humanidade, a flagelos até então desconhecidos.

O jarro divino foi recebido com a recomendação de jamais ser aberto, mas a curiosidade de Pandora foi maior. No momento em que a tampa foi retirada de lá saíram todo o mal, a fadiga, as doenças e toda a sorte de calamidade que atormenta da humanidade. Para nossa sorte, quando a teimosa esperança iria escapar o jarro foi fechado.

Há exatamente um ano entrávamos em uma quarentena que deveria durar 40 dias. Desde então nossas vidas nunca mais foram as mesmas. A miséria que escapou do jarro de Pandora chegou a milhares de famílias. Impossível chamar esse momento de novo normal. Não se normaliza a morte, nem tampouco a vida de quem perdeu um ente amado, sem nem poder realizar os rituais funerários tão fundamentais à elaboração do luto.

Nesse período aprendemos diferentes formas de conviver com a família, com os amigos e com o trabalho. Assim como o fígado de Prometeu nós nos regeneramos diariamente buscando adaptação às limitações que nos estão impostas.

Se um dos significados de Prometeu é “aprender por experiência, aprender a conhecer” há que se tirar muitas lições desse ano, mas principalmente dos últimos dias, e sobre as voltas que a vida dá.

E o mais importante é saber que na borda do jarro de nossas vidas habita a esperança. Ainda que lentamente a vacina está chegando. E com a mesma certeza que depois da noite vem o dia, ainda que possamos não ter Jogos Olímpicos esse ano, vem aí 2022 e a possibilidade de Prometeu sair de seus grilhões.