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A HEGEMONIA DA CULTURA EUROPÉIA NO CONTEXTO ESCOLAR

O processo educativo no Brasil esteve comprometido, por meio do funcionamento administrativo e pelo projeto político pedagógico da escola, com os ideais e interesses da classe dominante brasileira agindo conforme seus saberes, atitudes e necessidades que estavam fundamentados num projeto educacional europeu e norte americano. A escola possuía um papel importante nesse processo de reprodução de dominação cultural imposta pelas elites. A distinção de classe na política, na produção, na cultura e nas relações sociais era nítida. De um lado o saber erudito e a cultura ideal voltado para um setor hegemônico e branco definidor de padrões de comportamento social para aquisição de hábitos morais, sociais, intelectuais, corporais e higiênicos e do outro, uma parcela de pobres e negros com uma cultura dita inferior e grotesca. Nesta perspectiva, nem sempre o saber popular é levado em consideração ocasionando uma desqualificação da cultura popular e de seu valor enquanto instrumento e conteúdo a ser trabalhado na instituição escolar. Com o desenvolvimento dos centros urbanos houve uma ampliação do quadro de escolarização, e a educação que antes era privilegio só de uma classe dominante passa a atender as comunidades periféricas urbanas, comunidades rurais e as comunidades de forte ligação étnica.

Nesse processo há um choque entre a escola e a comunidade. Pois os conhecimentos transmitidos pela escola ainda preservam a hegemonia da cultura erudita como norma geral de comportamento social desconsiderando os saberes produzidos e preservados pelas comunidades populares que têm modos de vida, valores, crenças, hábitos e práticas corporais próprias. As instituições escolares implantadas nessas comunidades colocam em risco suas identidades culturais e suas relações ao desprezarem seus saberes e suas tradições.

CONGO: MANIFESTAÇÃO CULTURAL DO ESPIRITO SANTO

Nesse sentido, nosso trabalho foi investigar no município da Serra no Estado do Espírito Santo através de mapeamento, as comunidades que preservam o congo como peso identitário étnico. Essas comunidades revelam uma identidade étnica de forte demarcação territorial, sócio-cultural, religiosa e de traços corporais negros e indígenas evidentes. Quem mora no Espírito Santo ou já visitou o estado pode indicar a panela de barro e/ou a moqueca capixaba como pontos de referência. O problema é que, nacionalmente, pessoas de outras regiões do país pouco sabem do Espírito Santo e não lhe atribuem nenhum tipo de identidade. Mas, ao contrário do que muitos imaginam, o Espírito Santo tem uma forte identidade e diversas manifestações culturais na forma de danças e folguedos populares como o Congo, o Ticumbi, o Jongo, o Reis de Bois, Folia de Reis e Boi Pintadinho. Focamos o congo por ser a dança popular mais comumente praticada em comunidades especificas da Região metropolitana de Vitória. As comunidades específicas são comunidades populares, localizadas nas regiões periféricas do município da Serra. Essas manifestações estão concentradas em comunidades litorâneas, rurais e remanescentes quilombolas nas quais os modos de vida estão ligados à agricultura, produção da farinha de mandioca, ao artesanato, à pesca e a culinária. No período de mapeamento registramos as comunidades que desenvolvem seus modos em torno da manifestação cultural do congo: Macafé, Campinho da Serra, Serra sede, São Domingos, Pitanga, Caçaroca, Santiago, Nova Almeida e Jacaraipe (Serra).

Pretendemos investigar e acompanhar o cotidiano dessas comunidades, com idas às festas locais e analisar documentos escolares, entrevistando professores, lideranças religiosas e componentes das bandas de congo.

Apesar de estarem situadas no mesmo município as Bandas de Congo possuem diferenças na coreografia, nas indumentárias, nos versos cantados, na música, nos gestos e traços culturais. A diferença de estilo entre uma banda e outra é percebida ao soar de um apito, ou quando um mestre de congo começa a cantar. Ás vezes uma banda inicia sua apresentação com o mestre cantando. As mais antigas começam com a casaca e com toque do tambor de couro anunciando o inicio dos cantos e dos louvores. Outras bandas gostam de começar com o apito. Os versos comumente puxados pelos Mestres de congo fazem referência aos modos de vida das comunidades. Nas bandas de congo do litoral serrano os cantos versam sobre mar, pesca e a vida pacata de vilarejos.

Pesquisas de Osório (1999) constataram uma forte presença de afrodescendentes nas bandas de congo. Apesar dessa constatação não se sabe ao certo se o congo é de origem africana ou indígena. A primeira referência ao congo no Estado é de 1858 e ocorreu no livro Deux années eu Brásil, do viajante francês François Biard, que relata o seu encontro com indígenas por ocasião da festa de São Benedito.

No ano de 1860, o Imperador Dom Pedro II aportou na província do Espírito Santo e, numa visita à colônia de Reis Magos ou Nova Almeida foi atraído por uma banda de congo que os caboclos formavam em louvor a São Benedito e em seu diário registrou: " Danças de caboclos com as suas cuias de pau de cegos para esfregarem outro pau pelo primeiro" (ROCHA, 1980, p.125).

Mas muitos historiadores preferem afirmar que o ritmo nasceu junto com a necessidade dos negros em poderem adorar seus deuses africanos, juntando isso à adoração aos santos da Igreja Católica. O nome de banda de congos surgiu com a alteração de alguns dos instrumentos primitivos então usados nas festas, com isso o nome guarará, designação dada ao tambor passou a ser chamado de congo ou simplesmente tambor e as bandas passaram a ser conhecidas como Bandas de Congos, expressão que segundo os negros lembrava a África.

Devido ao sincretismo ele é considerado ainda hoje um ritmo tradicional do folclore capixaba, sendo tocado em festas religiosas típicas como as de São Benedito, São Pedro, São Sebastião e Nossa Senhora da Penha.

O Atlas Folclórico do Brasil (1982) caracteriza o congo como dança popular ou folclórica por ser um grupo musical de estrutura simplificada, com dançadores e um dirigente (mestre de congo), possui coreografia própria, sem texto dramático. O congo pode ser dançado por qualquer pessoa.

BANDAS DE CONGO E A FESTA DE SÃO BENEDITO

Por ser uma festa simples, que emerge das classes populares composta principalmente por negros pobres, moradores de vilarejos e/ou vila de pescadores, a elite quase nunca se interessou em participar, nem ao menos conhecer as Bandas de Congo. Poucos eram os capixabas que tomavam conhecimento de suas raízes, sua cultura e as manifestações que elas emergiam. O congo, muito antes de ocupar lugar de destaque na mídia, sempre esteve preservado nas comunidades específicas que, isoladas dos centros econômicos e políticos dos municípios, preservaram sua identidade cultural, suas histórias, suas tradições, suas festas e seus saberes.

Observamos na manifestação do congo um caráter folclórico - religioso. Por exemplo, as festividades do santo católico São Benedito dependem diretamente da sustentação das Bandas de Congo. A origem da Festa de São Benedito remonta ao naufrágio do navio Palermo, que até hoje é simbolicamente puxado no cortejo que movimenta a comunidade da Serra. A história conta que o barco carregado de escravos naufragou na costa do Espírito Santo e os negros escravos clamaram a providencia divina e ajuda de São Benedito. Protegeram - se das fortes ondas, agarrando-se ao mastro do navio e sobreviveram. A festa é dividida em três importantes fases: a cortada, a puxada e a fincada do mastro. No segundo Domingo de Dezembro, os devotos do santo negro vão à mata e escolhem o tronco de guanandi para ser transformada em mastro. A puxada do mastro acontece no dia 25 de dezembro e dá continuidade aos festejos com a procissão de São Benedito. Não há puxada de mastro sem Bandas de Congo. Após o ato religioso os fiéis seguem em procissão para buscar a réplica do navio Palermo no qual vai o mastro. Somente no dia seguinte o mastro é fincado.

Aos sons dos tambores, do apito e da casaca homens e mulheres cantam versos que fazem referências à escravidão, aos santos de devoção popular, às sereias do mar, ao amor e à morte. As mulheres, com as mãos na cintura rodopiam de forma a não dar descanso aos pés. A fogueira num cantinho da rua aquece o couro dos tambores. Durante a festa o profano e o sagrado se confundem. Enquanto uns cantam versos aos santos e oram, outros brindam a cachaça, brincam, dançam e se divertem. Nessa festa todas as bandas do município se encontram celebrando a união, o reencontro de famílias, amigos e casais.

AS RELAÇÕES ESCOLARES

Apesar de essas manifestações moverem o calendário cultural da Serra e do Espírito Santo, as escolas instaladas nessas comunidades não tratam tais manifestações como conhecimento a ser sistematizado e transformado em conteúdo escolar. Pouco tem-se discutido acerca da cultura popular e da possibilidade de sua sistematização na escola. Esse termo é facilmente associado ao tradicional, a algo pitoresco, atrasado e marginal. A identidade étnica é tratada no currículo escolar de maneira superficial e em ocasiões comemorativas.

Com relação à identidade do aluno afrodescendente e indígena e a cultura popular, os recursos didático-metodológicos, assim como os conteúdos, não contemplam a tradição afrodescendente e indígena, contribuindo assim para ignorar as culturas negra e indígena e confirmar a hegemonia da cultura européia. Dificilmente encontramos nas escolas um ensino mais aprofundado da História do Espírito Santo. O que aprendemos se resume à chegada dos portugueses e dos imigrantes estrangeiros em nossas terras. O Espírito Santo tem uma forte presença africana e indígena. E o ensino de suas histórias é insuficiente para entendermos a nossa construção identitária étnica. Não é dada uma atenção para a história das etnias indígenas Guaranis, Tupiniquins. De suas culturas, de suas lutas e resistências. O mesmo ocorre com a história dos descendentes africanos que tanto lutaram e resistiram na Insurreição de Queimado no município da Serra. .

A instituição escolar é primordial na educação dos indivíduos e é um espaço sociocultural onde convivem grupos e etnias em processo contínuo de construção e reconstrução de suas identidades. Estes grupos têm valores, comportamentos e regras adquiridos e construídos na família, na rua, nos grupos sociais e culturais. Nesse contexto a escola convive com o antagonismo, diversidade, desafio e conflito de culturas diferentes. Mas deve permitir um campo dialógico no qual seja possível alargar o discurso cultural que todos possam expressar as suas diferenças culturais.

A Educação Física é uma disciplina escolar com especificidades de conteúdos e conhecimentos organizados e sistematizados. A dança, o jogo, o esporte, a capoeira e as lutas são os conhecimentos, exteriorizados pela expressão corporal, que configuram a cultura corporal de movimento. Estes devem ter sentido, significado, contextualização, além de objetivos específicos associados ao componente curricular a que se destina ,permitindo ao aluno a reflexão de sua realidade e uma possível transformação. A tematização da Cultura popular pode ser contemplada por todas as disciplinas dentre elas a Educação Física. A possibilidade de sistematização do congo pode acontecer através do desenvolvimento de atividades pedagógicas que favoreçam aos alunos a construção de uma identidade mais positiva. A inclusão de temas da Cultura Popular tem esbarrado com a falta de formação do professorado para essas questões em suas aulas. Além da predominância da cultura européia que arraiga o pensamento pedagógico e a prática escolar dos professores encontramos nas aulas de educação física a predominância do conteúdo esporte. Essa prática ignora o ensino de outros conteúdos da Cultura Corporal de Movimento como: a ginástica, a dança, a capoeira, e as lutas.

O ensino da dança é previsto pelos Parâmetros Curriculares. Porém esse conhecimento tem sido esporadicamente trabalhado na escola.

Sendo lembradas somente em datas festivas como quadrilha. Raríssimas vezes se vêem nas escolas referências ao trabalho de professores de Educação Física com as danças populares como o congo, o ticumbi, o jongo, Reis de Bois, Boi Pintadinho. Através da dança muitas tradições, costumes, saberes e fazeres e a nossa própria história são passados de geração para geração. Conhecer, vivenciar, estudar, compreender, interpretar as manifestações socioculturais capixabas é permitir a mudança da escola de fora para dentro e o auto-resgate da cultura popular latente das comunidades que produzem e preservam seus conhecimentos e saberes.

CONSIDERAÇÕES

No congo identificamos importantes elementos simbólicos de memória, educação e identidade. Encontramos na instituição família a primeira forma de conhecimento dessa cultura. O mestre de congo é o elemento representativo que assume função desempenhada, prestigio social e exerce função de líder de opinião na comunidade. A memória do congo não está nos livros. Ela reside nas pessoas e na geração de Mestres. O mestre de congo é a autoridade responsável pela tradição, ensinando para os mais novos seus valores, significados e simbologia através da tradição oral. Desde pequenos os meninos aprendem a arte de tocar o tambor de congo, a confeccionarem os instrumentos com materiais retirados da natureza como paus, peles de animais ou restos de sucatas como ferro torcido e folha-de-flandres. As meninas aprendem com suas avós a dançarem e a carregarem o estandarte. Dessa forma consideramos a dança popular do Congo como uma possibilidade a ser sistematizada e contextualizada no âmbito escolar. Esperamos que esse trabalho contribua para ampliar o campo intelectual de educadores, ao lançar uma reflexão sobre as possibilidades de tornar a prática pedagógica mais democrática e amparada por um currículo mais adequado à diversidade cultural. Para que ocorra a construção de uma identidade é preciso ter um currículo multicultural e que a linguagem pedagógica de todos os segmentos que compõem o contexto escolar seja renovada, sem preconceito e revestida de alteridade. Atualmente a legislação em vigor ampara iniciativas de elaboração de currículos capazes de contribuir para a construção de uma sociedade plural que contemple a diversidade cultural, mediante implementação e viabilização de projetos relativos à identidade étnica. Esta é uma oportunidade para a escola repensar as suas práticas.

Obs. Os autores, acadêmica Terezinha Moreira dos Santos (perolanegra_es@yahoo.com.br) e o professor Dr. Antônio Carlos Moraes são dôo CEFD/UFES.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Atlas Folclórico do Brasil, volume destinado ao Espírito Santo,1982
  • Osório, Carla. Negros no Espírito Santo. São Paulo: escrituras editora,1999
  • Rocha, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito SANTO. Rio de Janeiro: Revista Continente; Brasília: INL,1980