Resumo

O processo histórico de patologização da obesidade teve início no final do século XVIII, mas só começou a se popularizar no final do XIX. Antes disso, a corpulência, como era denominada, era preponderantemente considerada saudável, bela, forte, potente, dentre outras qualidades. Essa inversão valorativa se configura como um processo sociológico de massa. Assim, considerou-se que o cinema, nascido no período de popularização da patologização da obesidade, poderia ter sido uma ferramenta midiática de massa de divulgação dos novos valores e do discurso patologizante. Para investigar essa hipótese, historiografou-se o período da história do cinema denominado Cinema Mudo, que corresponde às produções de 1895 a 1927. Utilizou-se como base teórico-metodológica, as concepções historiográficas de história serial, proposta por Barros; sociológicas da Teoria das Representações Sociais de Moscovici, da Teoria do Núcleo Central, de Abric e Flament; analíticas da análise discursiva da enunciação de Foucault; e, hermenêutico-filosóficas de Gadamer. Metodologicamente, foram compostas doze séries fílmicas, a partir de critérios diversos, conforme a importância apontada por historiadores do cinema em fontes históricas secundárias. O número de filmes de cada série variou de 1 a 318 filmes. No total, a amostra contou com 806 filmes e somou um total de 135 horas de duração. Todos os filmes foram acessados gratuitamente através da plataforma de vídeos youtube. O procedimento consistiu em acessar a obra e assisti-la a procura de passagens que contivessem conteúdos relacionados à corpulência. Os trechos considerados relevantes foram extraídos, com auxílio de software de edição de vídeos, e reanalisadas. Cada série foi analisada separadamente, compondo um artigo a parte. Um artigo final, buscando dar conta de todas as séries também foi produzido, assim como uma montagem documental, disponibilizada na plataforma de vídeos youtube. Os resultados permitiram concluir que a temática foi relativamente pouco pautada, somando somente 3% da duração total assistida. Além disso, em 91% dos 243 trechos extraídos houve tematização indireta. Em alguns casos, a tematização foi até mesmo implicada – ou seja, em decorrência da corporeidade do ator, sem que se saiba se foi proposital ou não essa escolha pelo diretor. As análises dos enunciados contidos nos núcleos centrais das representações sociais permitiram identificar certas formações discursivas mais ou menos recorrentes. Cada um dos trechos foi classificado em uma ou mais destas formações, constituindo ao todo vinte categorias temáticas, assim rotuladas: coragem, sanidade, generosidade, gula, alegria, forma, beleza, compaixão, volume, apetite sexual, mobilidade, habilidade, atratividade, peso, aptidão cardiorrespiratória, moralidade, perspicácia, força,posição socioeconômica, agressividade. Conforme a proposta analítica foucaultiana, essa ramificação discursiva não foi reduzida a um único tronco em busca de compor uma história linear, já que o estabelecimento de causalidades seria dificultoso e temerário, em vista que a pesquisa se concentrou nas representações, sem contextualizações externas das obras, do realizador ou da época. Por fim, concluiuse que o cinema mudo pode ter tido um papel mais destacado para a difusão dos novos valores relacionados à gordura corporal, mas não tanto de um discurso patologizante, já que foram encontrados poucos filmes que continham enunciados desse tipo.

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