Integra

 O artigo 26 da atual LDB ( lei n. º 9.394 de 20 dezembro de 1996), no seu parágrafo 3º apresenta a seguinte contradição:


 "A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da educação básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos".


 Esta lei, com aspecto de decreto não justifica tal indicação nem aponta se a opção facultativa pertence ao sistema educacional, à escola ou ao aluno. Entendendo a educação física "integrada à proposta pedagógica da escola", consideramos ser ela (a escola) responsável por esta opção. Firmamos nossas convicções no parecer n. º 05/97 do Conselho Nacional de Educação:


 "Certamente, à escola caberá decidir se deseja oferecer educação física em curso que funcionem no horário noturno. E, ainda que o faça, ao aluno será facultado optar por não freqüentar tais atividades, se esta for a sua vontade".


 Este parecer deixa claro que a educação física será componente curricular se a escola quiser, integrando-a à proposta pedagógica; e o aluno participará da aula se assim o desejar.


 Este artigo desta lei institui legalmente um tipo de discriminação contra os alunos-trabalhadores (ou trabalhadores-alunos, como preferem alguns autores) do ensino noturno, ferindo claramente vários princípios constitucionais. O artigo 3º, inciso IV da nossa Constituição estabelece que o país tem como objetivo promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No artigo 206, a Constituição Federal prevê a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, idéia esta, incorporam pelo artigo 3º da LDB 9.394/96. Além do artigo 5º afirmar que todos são iguais perante a lei. No entanto, sumariamente, a inserção curricular facultativa da educação física no ensino noturno tem sido sinônimo de exclusão.


 Este artigo da nova LDB que declaradamente promove a discriminação do aluno-trabalhador do ensino noturno, vem ressuscitar o artigo 6º do capítulo 2, do ideológico decreto n. º 69.450/71 assinado pelo General-Presidente Emílio Garrastazu Médici e pelo Coronel-Ministro Jarbas Gonçalves Passarinho, em plena era militar, que facultava a participação na atividades físicas, "Aos alunos do curso noturno que comprovarem, mediante carteira profissional ou funcional, devidamente assinada, exercer emprego remunerado em jornada igual ou superior a seis horas".


 Isto justificava-se pela concepção biologicista da educação física presente naquele decreto: os objetivos de desenvolver a aptidão física através de extenuantes sessões de treinamento desportivo, que eram denominadas "aulas de educação física", ficariam seriamente prejudicados caso o aluno viesse para a aula após uma jornada de trabalho. Hoje, pela concepção pedagógica da educação física , tanto recreativa quanto desportiva, onde as atividades físicas são meios e não fins, a ludicidade do jogo é unanimemente reconhecida como benéfica na preparação, recuperação e manutenção da força de trabalho, tanto na perspectiva do capital quanto numa perspectiva ontológica.


 Esta discussão delimita-se objetivamente pela reinserção da educação física como um componente curricular a ser obrigatoriamente oferecido pela escola no ensino noturno, considerando os benefícios e valores da mesma, observados e reconhecidos nas classes do ensino diurno.


 Temos como objetivo evidenciar como a Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo, de forma arbitrária, precipitada e equivocada, considerou a expressão facultativa como sinônimo de abolição. Este preceito legal não chegou a ser discutido nas escolas pelos professores. Esta abolição sumária não foi seguida pela rede estadual nem pelos municípios vizinhos: Itaboraí, Maricá, Niterói e em outros municípios, a nova LDB não modificou em nada a existência da educação física curricular no ensino noturno.


 Objetivamos com isso a reinserção imediata da educação física como um componente curricular obrigatório a ser oferecido pela escola, sendo facultativo a participação dos alunos, que embora legalmente prevista, a desqualifica como componente curricular frente às demais disciplinas obrigatórias. A legislação de qualquer assunto não é elaborada por especialistas destes assuntos. Elas são elaboradas por aqueles que compõem o poder legislativo que embora fazendo parte das comissões, muitas vezes desconhecem a complexidade do assunto que estão legislando. ROMANELL (1991) nos adverte que "A Eficácia de uma lei depende dos homens que a aplicam" (p. 179). Cabe à escola, juntamente com o seu corpo docente e discente, decidir democraticamente sobre os rumos da prática da educação física no ensino noturno. E cabe a Secretaria Municipal de Educação acatar os anseios da comunidades escolar, razão da sua existência.


 Na rede municipal de ensino de São Gonçalo, sem qualquer solicitação formal, é comum no curso noturno, dirigentes de turno, diretores, inspetores de alunos e professores de outras disciplinas ouvirem reclamações dos alunos pela inexistência das aulas de educação física, pela não permissão da direção de usarem a quadra para praticarem esportes na hora do recreio ou quando há aulas vagas, pela falta de um professor que fique responsável pela turma. A prática da educação física para estes alunos trabalhadores que estudam à noite, antes mesmo de ser considerada um componente curricular, representa uma necessidade. Mesmo se desconsiderássemos o valor pedagógico desta disciplina, ainda assim a educação física seria importante para eles: a prática do esporte formal, muitas vezes representa a única oportunidade de lazer ativo que estes alunos trabalhadores dispõem.


 A prerrogativa legal da "educação física, integrada à proposta pedagógica da escola..." contempla o ensino noturno, do qual integra a proposta pedagógica da escola. Ou estaria o ensino noturno de fora desta proposta ?.


 Em 1997 o MEC fez chegar às escolas os Parâmetros Curriculares Nacionais do 1º e 2º ciclos e no ano seguintes os do 3º e 4º ciclos do ensino fundamental. Os PCNs, Diretriz Governamental elaborada pelo MEC qualifica e justifica exaustivamente a existência da educação física na grade curricular. Embora os PCNs fazem referências ao ensino fundamental, não há dúvidas que estes objetivos e justificativas são desejáveis para qualquer nível de ensino. Faz-se necessário questionar a privação desses direitos, objetivos e justificativas aos alunos-trabalhadores do ensino noturno.


 N. Pithan e Silva, no livro "Atletismo" faz o seguinte comentário:


 "(a educação física) faz parte do programa educacional de todos os povos adiantados. O esporte é parte integrante da educação física. Sua função pedagógica está definitivamente reconhecida pelas mais altas autoridades científicas, educacionais e políticas" (P. 7)


 Este texto data-se da primeira metade da década de 70. É lamentável que hoje, último ano da última década do século XX, este reconhecimento só é ainda percebido pelas autoridades científicas, sendo grande o descaso das autoridades políticas, com a cumplicidade das autoridades educacionais.


 Como já citamos anteriormente, as leis educacionais não são elaboradas por educadores mas sim por políticos partidários com interesses na maioria das vezes alheios à educação. Na prática, quem conduz o processo ensino-aprendizagem é o professor; quem é responsável direto pelos rumos da educação no país, estados e municípios, além dos professores regentes, são os educadores existentes no Ministério e nas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. Segundo Costa, temos uma autonomia, que mesmo relativa, nos permite assumir as rédeas de nossa prática político-pedagógica.


 Conclusão


 Concluímos que, pela sua importância, por uma questão de direito, justiça e necessidade, a educação física no ensino noturno seja retomada com a máxima urgência neste município. A escola, por lei, tem esta autonomia; de inseri-la na sua proposta pedagógica (de onde ela nunca saiu), e a Secretaria de Educação tem o dever cívico e a obrigação moral de cumprir a Constituição, promovendo "o bem de todos"(...) sem quaisquer "formas de discriminação".


 Obs.


 1) . Até a data de inscrição deste trabalho no ENFEFE não houve retorno nem da SEMEC-SG nem das escolas em que o projeto foi encaminhado em 1998 e reiterado em 1999.


 2) . O autor é mestre em Educação (UFF), coordenador e professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Salgado de Oliveira - Niterói.


 Referências bibliográficas


Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil. DF: Brasília, 1988.
Brasil, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos: Educação Física/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
Costa, Gilbert Coutinho. Implicações históricas da representação social da educação física escolar no Brasil - Niterói., RJ, 1995. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal Fluminense.
Romanelli, Otaíza de O. História da educação no Brasil (1930-1973). 14 ed. Petropólis, RJ: Vozes, 1991.
Silva, N. Pithan e. Atletismo. São Paulo: Cia. Brasil Editora, s.d.