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O texto da autoria de José Gil (Com a IA “seremos mais simples e pequenos, pobres e felizes”), divulgado pelo jornal Público em 3 de dezembro, é de tanta acuidade e lucidez que nos ilumina e também assusta. O filósofo faz a radiografia dos argumentos tecidos a favor e em desfavor da inteligência artificial. Para ele é evidente que todas as tarefas agora executadas pelos humanos, se o seu desempenho for otimizado pelo emprego de tecnologias inteligentes, vão desaparecer. O mercado não abre mão desse ganho óbvio. Ora, isso acarreta o fim do antropocentrismo e do humanismo, do domínio do sujeito humano sobre o objeto composto pelos outros seres do mundo. E obriga a redefinir tais conceitos e a tirar as devidas ilações.

Face a esta ameaça, os humanistas, que antes afirmavam o primado da racionalidade, tomam agora a afetividade como essência concessionária da humanidade do indivíduo, ou seja, abjuram a definição clássica deste como ‘ser racional’, excludente dos aspetos inerentes à dimensão animal. Assim, os afetos, as emoções, os instintos e as paixões, de valia anteriormente apoucada ou suspeita, são hoje alçadas a bandeira contra a híper-racionalidade das máquinas e robôs. Portanto, o corpo e a animalidade nele ínsita vêem-se convocados para vir a terreiro e tentar salvar a visão que os tem depreciado em vários domínios, nomeadamente o da educação.

José Gil aborda as premissas dos apologistas da IA. Reconhece à máquina a capacidade de construir uma realidade paralela, quiçá mais perfeita, de produzir, replicar e superar os objetos e obras dos grandes autores conhecidos. Nenhum dos produtos do passado e do presente escaparia ao poder ‘criativo’ da IA. Só que este poder, por ser referenciado ao contexto dado e finito, conduz ao seu esgotamento, ao fecho da criação do novo e de singularidades; anula-se na repetição, isto é, na incapacidade de criar infinitamente, fora da determinação finita. 

As máquinas não potenciam e exponenciam a criação, ainda porque esta não assenta apenas na cognição, nem tampouco na unicidade. A arte apoia-se na singularidade e na aptidão do artista para combinar acasos e nexos, para se ligar a singularidades outras e, assim, dar vida ‘inorgânica’ à obra. E “é pelo corpo que a vida vem ao artista e que ele a recria na obra – o que a máquina inteligente não pode fazer”.

Para as máquinas poderem ‘criar’, elaborar obras inovadoras dos caminhos andados e abrir vias inexistentes, imprevistas e revolucionárias da criação artística, não bastam as faculdades do entendimento ou razão, da sensibilidade, da imaginação e da simulação de emoções e expressões do rosto e de timbres da voz. A criatividade e a originalidade advêm da aptidão para exprimir singularidades. Para isso seria preciso que os algoritmos das máquinas tivessem um corpo como o dos humanos e não o têm.

Afinal, o que diferencia o ente humano das máquinas superinteligentes não são a mente, a racionalidade e a inteligência; são o corpo e os seus heterónimos, dos quais sabemos tão pouco: o corpo biológico, filogenético, herdeiro e evolutivo da cadeia animal, o corpo de átomos, moléculas e partículas cósmicas, o corpo feito de plantas, o corpo colonizado e modelado pelas circunstâncias e colonizador e modelador delas, o corpo com espaço interior e exterior, o corpo propriocetivo, sensorial, intuitivo e plástico que se adapta, excede e transcende, modifica e revela nas atividades performativas, o corpo denso e extenso que transporta histórias, formas e memórias impossíveis de configurar no ADN do robô. Em suma, o que distingue e exalta a inteligência humana encontra-se adstrito à possibilidade do corpo se tornar outro, de estar em permanente devir animal, mineral, vegetal, morfológico, cultural, relacional. Este potencial subtrai-se à máquina; é único e pertença exclusiva do Ser Humano. O bailarino, o poeta, o músico, o pintor, o atleta etc. são diversidades e singularidades do corpo diverso, mutável e singular.

Os gregos estavam devidamente avisados, quando nos definiram como seres ‘artísticos’, intimados a suplantar a inumanidade mediante a ‘artificialização’, no sentido dado por Fernando Pessoa ao termo: “É de meu natural ser artificial.” Esta conaturalização na arte é operada pelo corpo, pelos atos e gestos que executa, pelas palavras que profere, pelas expressões e reações que assume. Sim, ele é distintivo e pilar do humano. Urge elevar o exercício dessa função, para limitar o uso e obviar a vitória das máquinas sobre o poder inventivo dos humanos. Para impedir que elas estreitem o campo das experiências e vivências afetivas e cognitivas, das necessidades e desejos, ideias, inquietudes, pulsões e volições, nos reduzam ao teor das operações que concebem, e eliminem tudo quanto é predisponente à criação linguística e cultural. Sob pena de derivarmos para um modo de pensar, falar e sentir igual ao delas, de nos desfazermos da complexidade e ficarmos “simples e pequenos, pobres e felizes”.

Jorge Bento

09.12.2023