Integra

14.03.2014

Para onibaS odnanreF

Ela chegou “derrepentemente”. Tão devagarzinho que eu demorei a perceber os seus primeiros sinais.  Mas agora tenho certeza: Ela chegou.

A primeira dica foi certo cansaço. De fato, não foi um cansaço literal. Apenas uma vontade de me preservar um pouco. Evitar todas as baladas, sejam sociais ou profissionais. Sim, há baladas profissionais! Para quem gosta muito do que faz, escrever aquele “artiguinho” extra, produzir uma “contribuiçãozinha” no livro daquele parceiro de tantas e boas, é sempre uma “balada” cerebral interessante, um desafio gostoso – seja um capitulo, um prefacio ou mesmo um parecer para alguma revista. Dar aquela “aulinha” naquele workshop lá no centro da cidade é sempre um prazer – desconsiderando o trajeto de duas horas ida e volta, ter que fazer uma social antes e depois, etc… Bom, a aulinha, a mesa redonda, o debate naquele seminário de um dia que vai avançar em muito o conhecimento na área – todos estes também podem vir a ser “baladas” intelectualmente muito estimulantes. Das baladas sociais, nem se fale – Sydney é cheia delas… Exposições, feiras, passeios, museus, praias, parques, eventos esportivos – tem de tudo, até festa junina a gente vai por aqui.

Mas como eu ia dizendo, desde meados do ano passado me deu uma vontade de dizer não… Uma “preguicinha”, um desejo de guardar minhas energias… A principio não percebi nada. Com muita energia, poderia continuar funcionando tal qual sempre fiz, tocando milhares de coisas ao mesmo tempo. Mesmo pique, apenas a fim de “dar um tempo”. Então, achei este “cansaço” algo ate normal. De modo que Ela teve que me avisar de outro modo que estava chegando, para ficar!

O aviso Dela veio na forma de uma dor lombar intensa. Não aquela dorzinha na coluna que a gente tem de tanto escrever no computador, ou depois de um dia de stress – aquela que uma boa massagem, um banho quente, um relaxamento muscular cura. Não, desta vez a dor foi pra valer. Como todo mundo, conheço centenas de pessoas com dores na coluna terríveis, tento me cuidar, alongar, e tudo, mas desta vez não deu. Dores fortes, exames, ultrassom, fisioterapia, tratamentos, e nada da bixa ir embora. Estava ficando desesperado, muitas dores e sem luz no fim do túnel para melhorar. Mas ainda não havia percebido Sua chegada.

Foi quando, ao vasculhar a biblioteca aqui de casa[i], encontrei um livro fabuloso do não menos fabuloso Fernando Sabino – O menino no espelho. O livro conta as mais variadas e prosaicas peripécias infantis na voz de Fernando, o menino-narrador que protagoniza estas aventuras – um garoto “sapeca” para lá de divertido.  Perto do meio do livro, no capitulo sete – que alias tem o mesmo titulo da obra – o menino estava olhando o espelho do seu quarto, quando comenta, assombrado: “Um calafrio me corre pela espinha, arrepiando a pele: há alguém vivo dentro do espelho! Um outro eu, o meu duplo, realmente existe!”.

Fiat lux! Neste exato instante que vi, senti e percebi sem sombra de duvida a chegada Dela. Sim, não sou mais um menino. Todo este papo de energia, e da coluna machucada, são evidencias definitivas, claras e ‘cientificas’ da chegada Dela. Enfim Ela, a Meia Idade, chegara! Cosa fare? Fernando Sabino e o guri no espelho me deram a dica que faltava.

Olhando no “espelho” aberto pelas historias daquele menino, comecei sem pressa a repassar a historia do meu corpo. Lembrando-me dos jogos e correrias da meninice, dos muros pulados (uops, falo serio aqui Seu Moacyr!), dos choques e batidas no asfalto do skate; dos jogos de queimada, dos dedos quebrados, dos esportes brincados – e das competições ferrenhas. Das danças, do frevo e das ladeiras de Olinda (ah, Olinda, continuo querendo cantar a ti, uma canção!). E dos amores, paixões frenéticas que certamente sacudiram minha coluna por dentro e por fora…

Colocar meu corpo no espelho, não de modo narcisista, mas de um jeito a contemplar, reviver, analisar todas as historias deste corpo, e os impactos sofridos pela minha coluna – os pesos que ela carregou, os prazeres que ela desfrutou, as contorções que ela teve que fazer para tentar ficar ereta, ou para levantar de novo depois dos baques – foi somente assim que comecei a vislumbrar e delinear um caminho para a minha cura. Ver meu corpo no espelho, chegando à meia idade, tem sido uma experiência fascinante – jamais faria isso sem a ajuda daquele menino no espelho.

A literatura cura!

O livro de Sabino é um primor. As peripécias que Fernando, o protagonista, passa, são incríveis. No melhor estilo fantástico (nem tanto realista…) o menino conversa e salva a vida de galinhas, enquanto prejudica os negócios do pai… é lançado por bambuzais e salvo por aviões no céu… Cria o “Departamento Especial de Investigações e Espionagem Olho de Gato”, cuja equipe é composta de sua amiga Mariana (codinome Anairam) seu cachorro Hindemburgo (“que não parecia gostar muito que a sociedade se chamasse Olho de Gato, mas gato é o que enxerga no escuro, não podíamos dar a ela o nome de Olho de Cachorro, como o referido agente certamente pretendia”) e Pastoff, o coelho cinzento de seu pai. A sociedade de espionagem, melhor, o clube detetivesco se reúne no forro da casa do agente especial Odnanref, e protagoniza uma serie de façanhas incríveis pelo bairro, invadindo casas abandonadas, almoços familiares entre outras proezas. O menino também joga futebol e vira um artilheiro decisivo nas finais de campeonatos profissionais, assim como destrona os valentões da escola com sua coragem inaudita; e passa apuros e sobrevive na selva cheia de bichos perigosos… As crônicas todas são uma viagem no tempo, a gente da gargalhadas gostosas imaginando (ou relembrando…) tudo aquilo – e rir já é uma grande cura!

Mas é na crônica ‘o menino no espelho’ que Sabino mostra toda a sua maestria de escritor… e da qual pude tirar lições não somente para a minha vida particular, mas também para outras questões que sempre me afligiram do ponto de vista profissional, como por exemplo, a Educação corporal de crianças e adolescentes na escola.

A historia é simples, mas primorosa. Fernando, o herói de todas as crônicas, quer ter um amigo da sua idade. Mais que um amigo, quer alguém igual a ele. Apenas um irmão gêmeo não basta, porque mesmo os gêmeos que ele conhece, ao reparar bem, “não são tão iguais assim”. Ele quer um menino que em tudo, seja igual a ele. Juntos, fariam brincadeiras formidáveis; unidos, seriam capazes de “conquistar o mundo”. Fernando passa horas treinando na frente do espelho, fazendo caretas, conversando consigo mesmo… Ate que um dia, de repente….tchanans! Ele puxa a mão no espelho, e ao invés dela ir para trás, a figura do espelho aparece, na frente dele, de carne e osso, “como outro menino, exatamente igual a mim”. Mas ‘do avesso’, pois se chama Odnanref. O encanto do menino do espelho foi ‘quebrado’ com a brincadeira do clube de espionagem Olho de Gato, na qual Fernando adotou como nome de guerra o seu nome de trás para frente. A partir dai, Fernando e Odnanref vivem aventuras incríveis, sempre escondidos e com o coração pulsando para não serem pegos…

Ao ler este conto, fiquei me imaginando no espelho … Olhando minha imagem refletida…pensando em quantas coisas já havia passado nestes anos todos…e foi com este leitura que pude encaminhar a cura da minha coluna, que, se ainda não esta totalmente recuperada, esta bem melhor, já me permite voltar ao computador e escrever algumas coisas…

Olhar-se no espelho, reparar-se, entender-se, gostar-se… Isso que Fernando Sabino ensina nesta crônica. Não seria isso que deveríamos ter como tarefa central na Educação Física? Ensinamos tantas técnicas, corremos e fazemos tantas atividades, mas no final das contas, são as pessoas com seus próprios corpos, são as pessoas que são seus corpos que terão que conviver consigo mesmas… Será que a ensinagem de Educação Física não passa por aprendermos a conviver conosco, ver nossos corpos se transformando ao longo dos dias, meses, anos, respeitando-o, abraçando-o, mudando junto, e tendo prazer com isso? Sera que não devemos, nesta ensinagem, fazer com que nossos alunos e alunas virem especialistas de si mesmo?

Mas o que temos feito é cotidianamente fazer com que as pessoas dependam do ‘outro’, do especialista que vai falar o que pode fazer com o corpo, e o que não pode… como e quanto correr… Como alongar… por a perna ali, o pescoço acola, puxar, segurar, fazer, fazer, fazer…Como nadar… ah, os quatro estilos! Os maravilhosos quatro estilos nos quais investimos tanto para aprender, e que nunca usamos quando estamos na agua… Sim, pois em geral, na piscina, no mar, no rio, estamos tentando aproveitar ao máximo aquela vivencia lúdica, brincar na agua, sentir prazer, relaxar… Mas ao invés de educarmos para a liberdade, deseducamos para a prisão, para a dependência, para que alguém de fora fale o que pode ou não, o que deve ou não… e claro, para que eu pague muito bem este especialista do meu corpo, uma vez que ele ou ela sabe muito mais do que eu, e muito melhor, o que é ou não é bom para mim.

Fernando Sabino ensina algo diferente disso. O seu Fernando, o seu menino, nem se acha tão bonito assim, se acha meio “sem graça, confesso que não sou do meu tipo. Mas era comigo mesmo que eu tinha de viver e, neste caso, um menino feito aquele ali diante de mim é que eu gostaria de encontrar, sem tirar nem por”.

Foi vendo e lendo o menino que queria encontrar alguém igual a ele – na verdade, que queria encontrar a si mesmo – que comecei a me redescobrir, a sentir as teias que me amarravam, mas que também contavam a minha historia corporal, de vida, de tantas andanças por este mundão velho sem porteira. Foi neste menino dentro e fora do espelho que percebi onde estavam as chaves da mudança e da cura – não fora de mim, não esperando que alguém me desse o toque magico para o sumiço da minha dor, que reprogramasse os exercícios certos para que eu possa fazer sem pensar ou sentir; mas sim num processo de reconhecimento de que é comigo que tenho que viver, e ninguém pode ser mais especialista deste ‘comigo’ que eu mesmo…

Obrigado Sabino. Re-aprender a conviver comigo mesmo, com meu corpo, limites, defeitos e prazeres, tem sido muito mais fácil após ler suas crônicas divertidas e que falam lá pra dentro da gente. Quem sabe a Educação Física um dia não ensinara a sempre colocarmos nosso corpo dentro do espelho, para enxergarmos não mais a imagem narcísica, mas sim a nos mesmos, e a essência daquilo que sempre buscamos?

[i] Eu tenho praticamente a certeza que a minha casa hospeda a “maior biblioteca de língua portuguesa” da Australia. NR – Esta é uma ‘piada interna’ que apenas os Knijniks australianos entenderão!  Mas quem quiser tentar ai embaixo nos comentários fique a vontade, acertando, ganha um canguru – ou um bumerangue, dependendo do que estiver disponível no momento.

Por Jorge Knijnik
em 14-03-2014, às 15:39

11 comentários. Deixe o seu.

Comentários

JK,
Excelente texto. Tenho até medo de postar. Vou espalhar pra turma. Acho que você fez uma ótima descrição do que foi a Educação Física do tempo do ensino. Quando chegarmos no século XXI, da aprendizagem, os estudantes – não mais alunos e alunas – vão poder desfrutar dos espelhos que não são de Narciso.

Quanto à dor nas costas, inexorável com o passar do tempo, descobri a causa numa edição recente do Ciência Hoje – não achei a referência agora -, em que o antropólogo explica os descaminhos da evolução do corpo dos mamíferos da nossa espécie, com tiradas saborosas como “um engenheiro principiante não faria um pé humano com tantas peças móveis”. O problema é que o conselho para evitar as nossas dores de coluna pode ter chegado um pouco tarde: A gente não devia ter ficado em pé quatro milhões e meio de anos atrás.

Vou até o espelho da livraria pra comprar o seu futuro livro de crônicas.

Laercio

Por Laercio Elias Pereira
em 14-03-2014, às 16:12.

Jorge, parabéns por este texto, que mais uma vez comprova ser você um escritor/cronista de mão cheia. Apesar da coluna, parece que os ares australianos lhe fizeram muito bem. Não ligue para suas dores nas costas, elas fazem parte integrante da raça humana. Nunca conheci alguém que jamais tivesse padecido destas dores. Provavelmente D’us não tinha à época o conhecimento completo da nossa estrutura corpórea, cometeu um ligeiro engano de engenharia. Mas nada que possa nos tirar o imenso prazer de viver. Vou tentar usar sua técnica do espelho, quem sabe mergulharei fundo na minha alma… Abração.

Por Julio E. Bahr
em 14-03-2014, às 18:52.

OI, JK.
É sempre inspirador ler suas reflexões.
Só lamento que este tenha sido fruto de uma enfermidade.

Grande abraço e cuide-se.

ps. Você não é muito jovem para essas coisas de meia idade?

Por ASA
em 14-03-2014, às 19:07.

Olá, JK.

Como sempre, suas reflexões nós inspiram a pensar para além das convenções.
Só lamento que esta última reflexão tenha sido motivada por uma enfermidade!

Você não é muito jovem para “crises” da meia idade? =/

Tamu junto!!

Melhoras e Grande abraço!!

Por ASA
em 14-03-2014, às 19:14.

Achei que a primeira mensagem não havia sido encaminhada…então… vai mais uma aí!

= )

Por ASA
em 14-03-2014, às 19:15.

Quando assisti a palestra da Eutonista Berta, na EEFUSP, em 1988, tive a impressão que o papel da Educação Física era fornecer os mecanismos para os alunos saberem lidar com o seu corpo. A consciência corporal. Eu te devolvi o livro. Você não desenvolveu o meu cd do Otto. beijos. Léo

Por leonardo
em 14-03-2014, às 19:17.

Adorei…ter essa percepção do nosso corpo, do nosso eu é uma dadiva. Muitos ficam procurando cura, médicos e alternativas que ninguém será capaz de realizar. Conhecer e entender o nosso corpo é maravilhoso. Obrigada pelos seus ensinamentos sempre…beijos

Por Flavia Leite
em 14-03-2014, às 19:41.

JORGINHO,

O texto é magnífico e motiva a que cada um diga: também me dói aí. Mas atente-se nesta verdade: em princípio só doi a quem viveu o suficiente para doer. AINDA ESTÁ VIVO!

AGUENTEM, FAÇAM REZA, MESINHA, MASSAGEM, BEBAM CHÁ QUE DÁ PARA DOR NAS COSTAS, CALO E FORMIGUEIRO

UM ABRAÇO

PAULA

Por PAULA
em 15-03-2014, às 2:45.

Mais uma delícia de texto com um convite a uma interessantíssima reflexão. Lembro dessa palestra a que o Léo se referiu em seu comentário. Ah, as costas… Acho que só muda o endereço. Bjos

Por Marcia Melsohn
em 15-03-2014, às 5:44.

Jorge, just wait till you get to OLD AGE.
remember I have a number of books to add to your brasil library –but all in English, I think.

Por bob
em 15-03-2014, às 10:09.

Jorge, querido! Que texto legal! Sim, sim, a literatura cura… Saudades e muita vontade de visitar vocês aí nestas terras longínquas. Vamos ver se calha!
Beijão!

Por Gabriela
em 22-03-2014, às 2:23.