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Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) e membro da Academia Olímpica Brasileira

Há algumas semanas estive em uma reunião na qual se buscava fazer um balanço sobre o presente e o futuro do País. Participaram daquele momento pensadores da educação, economia, segurança, cultura e do esporte, atentos aos projetos e às ações que fazem brasileiros e brasileiras tentarem entender onde estamos e por que há tanta incerteza no ar. Ouvir o que cada um daqueles iminentes especialistas tinha a dizer sobre a atual conjuntura, e acompanhar o raciocínio de cada um deles sobre o panorama futuro, mostrou que o esporte está na pauta das grandes preocupações nacionais. Isso porque ele é um fenômeno que mobiliza, que dialoga com diferentes frentes e porque é tanto negócio como entretenimento.

São inúmeras as possibilidades de interpretação desse fenômeno social, bem como o entendimento de como ele pode ser usado ou explorado. Há ainda que se categorizar as diferentes práticas e modalidades para que se entenda efetivamente o que se está analisando. Do espetáculo produzido e explorado às práticas cotidianas que envolvem educação e saúde, o esporte precisa de cuidado na sua compreensão, mas, principalmente, na sua interpretação.

Na ocasião, depois de discorrer sobre o que acontecia com o esporte olímpico e os atletas que precisarão se reinventar para sobreviver ao novo cenário, fui questionada sobre o futebol. E então respondi que o futebol merecia sair da editoria de esporte dos jornais e passar para a editoria de economia, uma vez que há muito passou a ser um negócio, embora ainda muito mais amador do que profissional. Sei que esse tipo de afirmação gera desconforto porque assim é feito o futebol: pouca racionalidade e excesso de paixão. E vejo isso acontecer não apenas nos textos informativos, mas também na academia, na qual a cultura do torcedor invade o espaço da necessária racionalidade para fazer as discussões avançarem.

As definições dos campeonatos estaduais do último final de semana confirmaram isso.

Por todo o País foi dia de decisão e as decisões são binárias, levam dois grupos a se confrontarem e do confronto surgem ainda mais paixões.

Nessa disputa ainda são agregados os que foram excluídos no processo da competição, porque parece ser inerente ao esporte a necessidade de posicionar-se diante da disputa. A neutralidade é apenas uma fantasia. Episódios passados, guardados na memória pessoal ou coletiva, são reavivados com a clara intenção de justificar o posicionamento adotado no momento. Não basta apenas torcer. É preciso justificar a escolha feita. Ou seja, mesmo que eu não seja alguma coisa “desde pequenininho”, no dia da decisão eu o serei. E assim são reforçadas histórias, mágoas e alegrias que pertencem àqueles a quem aquilo tudo faz sentido.

Quem já foi a um estádio sabe o ambiente mágico que se cria no momento de uma competição. Não há racionalidade que explique as reações de amor e ódio presentes entre milhares de pessoas que professam a defesa das cores de um clube. Por tradição ou por escolha, precoce ou madura, a torcida por um time guarda as marcas do afeto inexplicável. Ainda que muitas histórias sejam contadas para justificar o perfil de um time, fato é que muito do que acontece no presente guarda pouca relação com as origens centenárias de muitos clubes de futebol.

E o potencial socioeducativo de um evento como o final de um campeonato de futebol não pode ser desconsiderado. O esporte, e o atleta que protagoniza o espetáculo, razão de ser maior de tudo o que acontece no ambiente esportivo, deixam pistas de como andam as relações sociais e o entendimento dos valores humanos. Nunca é demais lembrar que é a presença do atleta em cena que viabiliza toda a existência do esporte.

Dentre as várias competições ocorridas no dia 21 deste mês, assistiu-se ao segundo jogo da decisão do Campeonato Paulista de Futebol entre Corinthians e São Paulo. Uma final entre dois grandes clubes, com tradição em finais e um histórico de rivalidades. Todos sabiam que daquele encontro sairia o campeão paulista, fosse no tempo regulamentar ou nas penalidades. Mas, mesmo diante do inexorável, a crença no resultado afirmativo para si dificulta a aceitação de outras possibilidades para um resultado adverso.

E, então, assiste-se ao indesejável.

O jogo jogado termina com a vitória de um dos lados. E, como na teoria dos lados do Menino Maluquinho, de Ziraldo, afirma-se a assertiva de que todo lado tem sempre mais do que dois lados. Ganhar e perder multiplicam-se em comportamentos acessados e visíveis mundo afora. A alegria do vencedor contrasta com a frustração do derrotado, que pode, ou não, ser reconhecida como uma atitude apenas e tão somente demasiadamente humana.

Desde que o esporte deixou de ser uma competição entre nobres e “gentis homens” e se tornou um negócio espetacular, os protocolos da disputa passaram a não mais seguir somente a ética própria do jogo, também chamado de fair play, para ser também um ideal de moral para a sociedade. Isso porque o atleta é considerado como uma espécie de ideal de ego, principalmente para a juventude. Não é à toa que recentemente o Comitê Olímpico Internacional lançou campanha colocando o atleta na condição de “modelo ideal”, com todas as ambiguidades que essa condição possa carregar. Claro está que, diante da complexidade que envolve o esporte na atualidade, ele pode transcender a sua condição de competição para ser um campo de exercício de valores e virtudes.

Na final do Campeonato Paulista de Futebol viu-se que uma vez mais aquele momento poderia ter sido banalizado, quando o time derrotado se retirou de campo antes da entrega das medalhas e troféus. Poderia entrar para a história como mais uma manifestação antiesportiva não fosse o supervisor do clube, o pós-atleta Raí, descer ao vestiário e exigir do elenco tricolor o fair play tão declarado e tão pouco praticado nos últimos tempos. Como atleta que foi, Raí sabe exatamente o que significa perder, mas sabe também a importância dos rituais no esporte. Respeito ao adversário e ao vencedor refletem a educação de quem joga. Ou melhor, podem indicar onde se quer e se pode chegar com um “simples” jogo. Ele que é o patrono de um projeto social que busca desenvolver valores para formar cidadãos, não se furtou a chamar seu elenco à responsabilidade que lhe impõe o ofício de atleta.

Perder não é uma sensação agradável, mas faz parte de qualquer tipo de disputa. Honrar e respeitar os vencedores, e também os perdedores, torna possível a vida em sociedade. Fora isso é a bestialidade. Quando não se suporta o resultado de uma competição justa, o que resta são as tentativas de sabotagem do acordado pela regra do jogo. Tem-se então um cenário que privilegia a força e não a justiça. Mesmo contrariado o derrotado, ao cumprir os rituais, aponta para a torcida que, para além da regra, há também formas de convivência que permitem que haja outras competições nas quais regras e vencedores serão respeitados.

Acredito que aí está uma das maiores contribuições do esporte para a sociedade. Muito do que se assiste em campo é aquilo que também se dá nas outras esferas da convivência em grupos. E acima de todos eles reside o respeito, princípio e fim das relações humanas.

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