Resumo

Os estudos da infância sugerem que, até o século XVI, tal conceito inexistia. Ele surge na esteira das mudanças que inauguram a modernidade. De modo que ao século XVIII é consagrada a invenção social da infância. Uma infância que abriga em si a criança que tem direito ao bem-estar defendido por Rousseau e, pela sua natureza dependente e fraca, precisa ser disciplinada como propõe Durkheim.

Até os dias de hoje vemos a infância tratada como um período de vida, com suas singularidades e potencialidades, mas constituída de indivíduos obrigatoriamente tuteláveis, sem direito a voz e, cuja vez, balança ao sabor das intencionalidades dos mandatários do mundo: os adultos.

É nesse recorte que posiciono o treinamento desportivo precoce. No cabedal das práticas predatórias ao direito de ser. Porque antes que a criança possua vivências suficientes para embasar uma escolha própria, seu destino já é traçado pelos que a tutelam. Direta ou indiretamente, posto que muitos pais não têm consciência desse engodo.

Sim, um engodo, porque como puderam ler nos textos que me antecederam ao longo destes dias em que debatemos a criança e a exploração pelo esporte, a ciência aponta que a precocidade do treinamento esportivo não é salutar. Portanto, a massificação desse entendimento só encontra explicação no incremento da oferta da mercadoria “atleta talentoso”.

Por que o caminho para esse incremento não foi o da valorização da educação física escolar (muito pelo contrário, inclusive)? Será porque nesse caminho não há intermediários/atravessadores que possam assegurar para si os percentuais remuneratórios aplicados aos “atletas talentosos” bem sucedidos? Isso para nem problematizar o potencial efeito disso na (indesejada) valorização da escola e da educação como um todo enquanto perspectiva de um futuro cidadão.

Enfim, esta é a contribuição do esporte ao já prenunciado “desaparecimento da infância”. Porque é o que está ocorrendo em todas as áreas: as crianças estão sendo consumidas e consumadas. Tal qual o fruto de melancia que, mal se anuncia, é acondicionado no caixote que lhe definirá o formato.

Mesmo partindo da ótica do vir-a-ser da criança, da infância enquanto período preparatório para a vida adulta, a pergunta que paira no ar não se configura menos assustadora: que adultos seremos com o desaparecimento da infância?

Não queiram perguntar isso às melancias quadradas: ao contrário das crianças, não são “dotados de razão e consciência” como os “seres humanos” que “nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos in
 https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000139423#, out. 2020).

Sugestão de leitura: Postman N. O desaparecimento da infância. Tradução: Suzana M. de Alencar Carvalho e José Laurentino de Melo. Rio de Janeiro: Graphia; 2005. 190 p.