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ESPAÇO UNIVERSIDADE 07.08.2023 17:44

Por Manuel Sérgio

Quando, em 1983, visitei, pela primeira vez o Brasil, a convite do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), não esperava passar por uma experiência tão profunda, tão inesperada, como a que vivi, na pátria dos meus queridos Lino Castellani Filho e Laércio Elias Pereira, que foram esperar-me, em São Paulo, ao aeroporto e que assim me acolheram, num sorriso amplo, fraterno: “Nas nossas humildes pessoas, é o Brasil que o abraça”(sic). Um país que, digo já, me proporcionou a revelação de mais latas dimensões da vida. Lino Castellani Filho e Laércio Elias Pereira continuam figuras respeitadas e prestigiadas da Educação Física brasileira e a eles devo o meu primeiro agradecimento pelo muito e belo e avassaladoramente humano, que aprendi no Brasil. Não, não foi a vertigem da novidade, a curiosidade continuamente estimulada, os sentidos abertos, como pétalas frementes, de um certo erotismo. Eu levava na minha mala o resultado das minhas leituras de Michel Foucault, onde se me tornara evidente que a educação física nasce, como disciplina médica, no século XVIII, o século áureo do racionalismo, e sofrendo do dualismo antropológico cartesiano. A Razão era a imagem imperial do pensamento, a que o corpo, simples matéria, deveria subjugar-se. Mas o que, francamente, me surpreendeu foi o trabalho tão religioso, como social e político, de toda a Igreja  latino-americana. A Igreja Católica era (é) a “Igreja dos Pobres”, assim o pensam e o dizem os vários episcopados da América do Sul. “O fundamento da própria opção preferencial pelos pobres e da própria solidariedade com os indigentes, descobre-o a Igreja no misterioso plano salvífico de Deus, revelado no exemplo de Jesus, que anuncia o reino aos oprimidos e marginalizados, nos quais a imagem divina se acha obscurecida e também escarnecida. Deus ama particularmente os pobres e defende-os. Eles são os primeiros destinatários da missão, porque a sua evangelização foi sinal e prova da missão de Jesus” (Brotéria, Novembro de 1985, p. 390).

A D. Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, ouvi eu esta frase que nunca esqueci:”O protesto dos pobres é a voz de Deus”. Ora, quando o Papa Francisco foi eleito, advindo da América Latina, logo me veio à mente a “Igreja dos Pobres”, quero eu dizer: uma eclesiologia humilde, fraterna, de comunhão, intencionalmente diaconal e carismática, que fazia sua a luta dos pobres, dos marginalizados pela sociedade injusta, em prol da sua libertação social e política. A Igreja era pensada e sentida como missionária, como evangelizadora, mas o seu anúncio do Evangelho significava também compromisso com um “povo de Deus” concretamente condicionado por uma economia liberal que em si comporta princípios de exclusão e desigualdade crescentes”. E quando o Papa Francisco proclama, logo no início do seu pontificado, que… “esta economia mata”; quando fez de Francisco de Assis o seu patrono, tomando o nome do Santo de Assis; quando deixou de viver nos faraónicos aposentos papais, para fazer seus os poucos metros do quarto de um colégio; quando o destino da sua primeira viagem, fora do Vaticano, em Julho de 2013, foi a ilha italiana de Lampedusa onde desaguavam, diariamente, milhares de refugiados africanos, alertando, então, emocionado, para a “globalização da indiferença”; e muito mais poderia lembrar, neste momento – tive a nítida sensação que a responsabilidade social da Igreja diante de situações económicas e sociais e políticas de extrema desigualdade, pois que uma reduzida minoria, na América Latina e no mundo todo, possui a esmagadora maioria dos recursos, tendo em conta as exigências do bem comum: seria o objetivo primeiro (não o essencial)  do seu pontificado. Aliás, à imitação de Jesus Cristo que multiplicava, milagrosamente, os pãos e os peixes, para alimento das multidões que O queriam escutar…

É evidente que este Papa o que pretende dizer, sobre o mais, é que a Boa Nova de Jesus Cristo corresponde às aspirações mais profundas e universais da natureza humana e portanto, para ela, é também pecado a fome e todas as situações de violência e de miséria e de injustiça económica e social. O que este Papa pretende dizer, sobre o mais (assim o penso eu) é que não se é cristão se não se é exemplarmente humano. Todos temos defeitos (cheguei ao fim da minha vida e reconheço e lastimo os meus). Fiz a peregrinação pelas grandes escolas filosóficas, mormente do Iluminismo até hoje, e cheguei a descrer no Deus que os meus queridos pais me ensinaram a crer e a amar. Cheguei a descrer do Deus… em que, hoje, profundamente, quero crer! Para mim (e digo o mesmo o que Jean Guitton já o disse, antes de mim) negar-se a existência de Deus é um absurdo assim como afirmar a existência de Deus é referir um mistério. Não acredito no “acaso criador” de algumas teorias científicas. Toda a aventura da vida me parece orientada por um princípio organizador. Como estudei em Ilya Prigogine, a vida repousa sobre “estruturas dissipativas” que permitem a emergência de uma nova ordem, ou um nível superior de organização. Leio La nouvelle alliance, de Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, editado pela Gallimard: “O que é espantoso é que cada molécula sabe o que as outras moléculas farão ao mesmo tempo que ela e a distâncias macroscópicas: nossas experiências mostram como as moléculas se comunicam. Todo o mundo aceita essa propriedade nos sistemas vivos, mas ela é no mínimo inesperada nos sistemas inertes”. Portanto, para mim (e não estou só) o universo tem uma história que não se explica por mero acaso. Para mim, Deus existe. Mas quem é Deus – verdadeiramente não se sabe. No entanto, o atual Papa, eleito na noite chuvosa de 13 de Março de 2013, afirma e reafirma  “urbi et orbi”, convictamente, que Deus nos ama…

“Quem antes de Francisco esperaria ver um Papa dirigir-se a uma jovem transsexual tal como fez no passado dia 25, durante um podcast (popecast, no caso, produzido pela Rádio Vaticano) dizendo-lhe que Deus a ama tal como ela é?. Isto mostra o quanto a atenção de Francisco às periferias vai muito além da geografia. Abarca os casais “irregulares”, os que abortaram, os homosexuais. Afinal, como este Papa foi repetindo ao longo dos anos, não compete aos padres o papel de fiscais da fé”. (Público, 2023/7/31). Mas… quem é este Deus de que nos fala o Papa Francisco? É (continuo a dizer: se bem penso) o Deus de Jesus de Nazaré, que nos quer pobres para podermos ser irmãos! Mas, para o Papa Francisco, esta pobreza não significa miséria. “A  pobreza é o permanente esforço para remover posses e interesses de qualquer tipo, para que daí resulte a verdadeira imediatez da fraternidade. Ser radicalmente pobre para poder ser plenamente irmão: este é o projeto de Francisco, no que diz respeito à pobreza” (Leonardo Boff, Francisco de Assis e Francisco de Roma, Pergaminho, Rio de Janeiro. 2014, pp.79/80). Lembro o Papa Francisco: “A medida da grandeza de uma sociedade é dada pelo modo como trata os marginalizados”. Mas, no Parque Eduardo VII, o Papa ergueu esta certeza: “Não transformem a Igreja numa alfândega”. Na Igreja, cabem justos e pecadores, bons e maus. E acentuou: na Igreja, cabem “todos, todos, todos”. E meio milhão de pessoas repetiu: “todos, todos, todos”. Perguntava António Barreto, no Público (2023/8/5): “De onde vem o carisma formidável deste Papa?”. Permito-me avançar uma resposta: a sua fé inabalável no Deus de Jesus Cristo e porque, defensor de uma ecologia integral, se considera irmão de todas as criaturas. Não aceita, por isso, que o tratem por “Sua Santidade” pois que não é mais do que “irmão entre irmãos”. Rejeita, terminante, o luxo dos aposentos papais, mais próximo dos palácios dos imperadores romanos do que da gruta de Belém e da humilde casa de Jesus, em Nazaré.                                                                                                                                 

O poder monárquico-hierárquico, absolutista e dogmático, dos papas fez esquecer ao papado e à própria Igreja, no seu todo, que os grandes representantes de Cristo, neste mundo (Mt. 25,45) são os pobres, os sedentos, os famintos e os que sofrem. Por Cristo, há lugar na Igreja para a profecia, visando um mundo de Amor e de Paz. Vale por isso a pena estar dentro dela, com todos os defeitos que encontremos nalguns dos seus representantes “oficiais” (e incluo aqui a pedofilia) como estavam S. Francisco ce Assis, D. Helder Câmara, João XXIII e tantíssimos mais e…  como está o Papa Francisco – o Papa Francisco que partiu da perceção nítida, insofismável de que a Igreja Católica, como ele a visionou do alto da sua cátedra, era uma Igreja sem saída e aqui e além até motivo de escândalo. Por outro lado, o catecismo ensina as crianças que a Igreja nasceu pronta, inalterável, acabada da vontade de Jesus. Ora, como tudo o que é humano, também a Igreja é tempo, é processo e cabe-nos (a nós, católicos) com fé, com a fé cristalina do Papa Francisco, corporizar uma evangelização de todos e para todos – todos, todos, todos! Na Jornada Mundial da Juventude, ele repetiu, com vigor: “Não tenham medo”. Que o mesmo é dizer: Não tenham medo de ser diferentes… porque amais os outros como a vós mesmos! Os outros, ou seja, todos, todos, todos! É verdade que o que venho de escrever não é especificamente desportivo. No entanto, para mim, mão há jogos, há pessoas que jogam. E, se há pessoas, o que o Papa Francisco disse, na JMJ, é para o Desporto também.

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