Resumo

      

              

              

                                 

Integra

        Se não estou em erro, é de Gide a frase: “Os insubmissos são o motor do progresso”. Insubmissos foram Jesus Cristo, Sócrates, Giordano Bruno, Galileu, Descartes Espinosa, Pascal, Leibniz, Newton, Voltaire, Nelson Mandela (entre muitos, muitos outros, alguns portugueses, como o Raúl Proença, um lutador antifascista de que pouco se fala) – todos eles, exemplos de cultura, porque há só uma única maneira de ser culto – é fazer cultura! Em face da lassidão tradicional, Jesus Cristo, numa linguagem precisa, incisiva, aconselhava uma práxis que o aproximava de quem tinha fome, de quem tinha sede (e não só de água, também de justiça), isto é, de todos os deserdados, designadamente pela sociedade injusta. Como o refere Leonardo Boff, em Jesus Cristo Libertador (Editora Vozes, Petrópolis, 2001): “Jesus Cristo não propugna um amor despolitizado, deshistorizado, mas um amor político, ou seja, situado e que tem repercussões visíveis para o homem” (p. 31). Em Jesus Cristo, o anúncio de uma fé não invalida a luta histórica por um mundo em que todos nos amemos como irmãos. São palavras suas: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos”. A cultura supõe a prática. Demais, um conceito não exprime nunca, adequadamente, a experiência, ou a prática, de que é o conceito. Continuando a meditar o livro, acima citado, de Leonardo Boff, saliento o seguinte: “Jesus se tornou um perigo, para a ordem estabelecida”. E chega a ser condenado como blasfemo e guerrilheiro. Como trabalhei 13 anos, nos Armazéns do Arsenal do Alfeite, privei bem de perto com os sofrimentos e a contestação e a indignação da classe operária, que se sentia explorada e manipulada pelo salazarismo. Foram também muitos os intelectuais que, desafiando todas as proibições e riscos, se rebelaram contra a ditadura. Ocorrem-me, neste momento: o Mário Soares, o Raúl Proença, o Bento de Jesus Caraça, o Jaime Cortesão, o Raúl Rego, o Álvaro Cunhal, o Aquilino Ribeiro, o Jorge de Sena, o António Sérgio, o Sottomaior Cardia, o José Medeiros Ferreira, o Eurico de Figueiredo e… tantos, tantos mais! Sofreando a tentação de tornar-me enfadonho, centro-me tão-só num deles, de que pouco se fala: o Raúl Proença (1884-1941). Licenciado em Ciências Económicas e Financeiras, pelo Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, integrou o grupo dos fundadores da Seara Nova, em 1921 e trabalhou como bibliotecário, na Biblioteca Nacional de Lisboa, colaborando diretamente com o médico e famoso historiador, Jaime Cortesão, quando este ascendeu a diretor daquela instituição pública.

            Combateu, com grande ciência política e voz cáustica, o sidonismo e, em 1926 e 1927, a Ditadura Militar, o que levou a polícia do Estado Novo a persegui-lo com tão encarniçada aversão, que o condenou ao exílio em Paris. Quando a filha mais velha de Raúl Proença faleceu, vítima de tuberculose, o ministro do Interior da Ditadura, general Vicente de Freitas, mostrou-se insensível às instâncias feitas junto dele, para que autorizasse a presença do pai, nos últimos momentos de vida da filha. E, com uma resposta de sinistra memória, despediu assim os amigos de Raúl Proença: “Se ele vier a Portugal, mando-o prender, nem que seja à cabeceira da filha moribunda”. Acometido de grave doença mental, regressou a Portugal, em 1932, para ser internado no Hospital Conde de Ferreira, onde faleceu. Sofia de Melo Breyner Andresen traduziu, em magistral poema, a mulher e o homem insubmissos e que as páginas da História jamais poderão esquecer:

             “Porque os outros mascaram mas tu não.                                                      
               Porque os outros usam a virtude
               Para comprar o que não tem perdão.
               Porque os outros têm medo mas tu não.
               Porque os outros são túmulos caiados
               Onde germina calada a podridão.
               Porque os outros se calam mas tu não.
               Porque os outros se compram e se vendem
               E os seus gestos dão sempre dividendo.
               Porque os outros são hábeis mas tu não.
             
               Porque os outros vão à sombra dos abrigos
               E tu vais de mãos dadas com os  perigos.
               Porque os outros calculam mas tu não”.

            O ensaio, se não laboro em erro grave, ´é o género literário dos insubmissos, dos que procuram um novo paradigma. Numa tese de doutoramento, de carismática vivacidade,   sobre Fidelino de Figueiredo (1889-1967), um ensaísta português inconformista, que investiu porfia e lucidez num paradigma pós-positivista, tanto literário, como filosófico e político, escreve José Cândido de Oliveira Martins: “Assim como o ensaio de Montaigne representava uma reacção contra o pensamento escolástico medieval, também o de Fidelino pode ser lido como exercício de distanciamento crítico, em relação ao Positivismo que dominava a Ciência e o pensamento, desde finais do século XIX,  sob a forma de novo dogmatismo escolástico (…). Como deixámos sugerido, para Fidelino e tantos outros pensadores seus contemporâneos, o ensaio constituía claramente o género mais adequado ao estudo reflexivo sobre situações históricas complexas, à procura de um sentido explicativo e integrador. Não será por acaso que ele prolifera manifestamente, em períodos de crise, como aconteceu com a Geração de 98, em Espanha, que Fidelino tão bem conhecia e não se esquece de citar frequentemente” (Fidelino de Figueiredo e a crítica da teoria literária positivista, Instituto Piaget, Lisboa, 2007, p. 45). Eu mesmo, embora os meus enormes limites, tenho procurado pensar o desporto, através do género “ensaio”. Profundamente enraizado na minha época; convivendo com desportistas desde criança; aprendiz do desporto, como ciência e filosofia, desde que entrei de trabalhar no INEF (Instituto Nacional de Educação Física), em 1968 – eu mesmo encontrei, na natureza rebelde e utópica do ensaio, o modo (para mim, ideal) ao ressurgimento de uma axiologia,  típica do desporto (os “valores do desporto”) e ao surgimento de uma nova axiologia que não tenha em conta, acima do mais, os valores dominantes, na “sociedade de consumo”. Por exemplo: o desejo de vencer, sem olhar a meios, rouba ao desporto a hipótese de transformar-se numa ética em movimento e numa estética entendida como ética do futuro. A celebração do corpo belo do atleta deverá percecionar-se como um fenómeno simultaneamente ético e estético.

             Na revista Sábado, de 2019/4/17, os valores do desporto surgem desfigurados, por agressões bárbaras aos árbitros de futebol, mormente nos Distritais e no Campeonato de Portugal. “Narizes partidos, tímpanos furados e até um árbitro em coma (…) são o reflexo do ambiente de guerra, que se vive no futebol português”. São de uma bruteza cruel as palavras com que se agridem os árbitros de futebol, durante as competições oficiais e as incompreensões e maledicências que alguns “críticos” não escondem, sistematicamente, na análise do seu trabalho. Cria-se, assim, um ambiente em que o árbitro é desrespeitado, mesmo por qualquer motivo fútil e a sua profissão se torna uma atividade eriçada de perigos. Por seu turno, há dirigentes que estão permanentemente em guerra, sem o indispensável alicerce daqueles valores que nos mostram o caminho de um homem e mulher novos, de um mundo novo. O desporto, ou se transforma num espaço de criação de uma sociedade diferente – ou não é Desporto! Que o Desporto se converta numa nova utopia, que seja a síntese do “Amai-vos uns aos outros como a vós mesmos” de Jesus Cristo, da República de Platão,  da Cidade do Sol de Campanella, da Cidade da Eterna Paz de  Kant, da Sociedade Sem Classes de Marx, da Situação de Total Amorização de Pierre Teilhard de Chardin. Que o desportista seja, pela transcendência, um homem, ou mulher, que morreram para o egoísmo, para o economicismo, para o consumismo, para a “exploração do homem pelo homem” e ressuscitem, num corpo glorioso, com a certeza que é possível uma total comunhão entre os homens de boa vontade, que é possível dar primazia à misericórdia, à generosidade e à ternura – que é possível amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos!

            Releio A Gaia Ciência, de Nietzsche: “Para onde terá ido Deus?... Matámo-lo! – vós e eu! Os seus assassinos somos nós, todos nós! (…) Deus está morto! A grandeza deste ato é demasiada para nós. Não teremos nós próprios que nos tornarmos deuses, para simplesmente parecermos dignos dela?”. Mas, para Nietzsche, o super-homem é o reencontro Apolo-Dioniso: Apolo, o deus da bela aparência, da ordem, da medida; Dioniso, o deus dos excessos e das pulsões imparáveis. Não passa, afinal, de um homem, como tantos outros homens. E um homem nem sempre exemplar. Hoje, por mais que os detratores se conluiassem, ainda é em Jesus Cristo (talvez o Jesus Cristo de Teilhard de Chardin e do Papa Francisco) que encontro a Esperança e o Futuro. Poucos dias antes de suicidar-se na noite de 26 de Setembro de 1940, Walter Benjamin escreveu: “Paul Klee tem um quadro intitulado Angelus Novus. Faz lembrar um anjo que parece prestes a afastar-se de algo que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca aberta e as asas insufladas. Assim deve ser o anjo da História. O seu rosto está virado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única catástrofe, que vai amontoando escombros sobre escombros, lançando-os perpetuamente aos seus pés. O anjo gostaria de demorar-se um pouco mais, despertar os mortos e juntar o que foi desmembrado. Do paraíso, porém, sopra uma tempestade que lhe agita as asas com uma tal violência, impedindo-o de as recolher. A tempestade impele-o irresistivelmente para o futuro, ao qual vira as costas, enquanto diante de si o monte de escombros cresce até ao céu. Esta tempestade é aquilo a que chamamos PROGRESSO” (in Oeuvres III, Gallimard, Paris, 2000, p. 434). O texto de W. Benjamin contrasta nitidamente com o artigo de Kant, 150 anos antes, glorificando o Iluminismo e o Progresso. Que vivemos imbuídos de Progresso (progresso tecnocientífico) quem o poderá contestar? Mas que, nem por isso, somos melhores – quem o poderá contestar também? Falta-nos ressuscitar, numa presença viva e concreta de transcendência. Feliz Páscoa!