Resumo

Explorando como as práticas de hidratação de atletas são moldadas por fatores culturais, um estudo mostrou que tais diferenças podem impactar o desempenho e a recuperação atlética.

Integra

Entenda o essencial

  • As diretrizes de hidratação baseadas em evidências nem sempre são seguidas devido a fatores culturais como crenças religiosas, tradições, preferências e disponibilidade de bebidas.
  • Exemplos de práticas influenciadas pela cultura incluem o consumo de cerveja após esportes (países ocidentais), suco de cana-de-açúcar (Índia), jejum do Ramadã (muçulmanos) e a preferência por bebidas mornas (cultura chinesa).
  • A maioria dessas práticas carece de evidências científicas sólidas sobre seus efeitos na reidratação, desempenho e recuperação do treinamento.
  • Algumas práticas podem ter benefícios potenciais (antioxidantes no açaí, eletrólitos no suco de cana), mas outras são inconsistentes com as recomendações atuais (cerveja, jejum prolongado).
  • Mais pesquisas são necessárias para entender os impactos fisiológicos dessas diferenças culturais, permitindo orientações mais precisas e personalizadas.

Hidratação: quando a cultura encontra o desempenho

A hidratação adequada é um elemento essencial para a saúde, o desempenho atlético e a recuperação. No entanto, as práticas de hidratação não são universais. Elas variam significativamente entre culturas, influenciadas por crenças, tradições e até mesmo pela disponibilidade de bebidas. Imagine um atleta brasileiro consumindo açaí após um treino intenso, um corredor indiano reidratando-se com suco de cana-de-açúcar ou um atleta muçulmano gerenciando a hidratação durante o jejum do Ramadã. Essas situações cotidianas ilustram como a cultura molda as escolhas de hidratação, muitas vezes independentemente das diretrizes científicas.

Importante lembrar que as diretrizes mais aceitas, como da ACSM (American College of Sports Medicine) proporcionam diretrizes sobre os tipos, quantidade e momentos de consumo de fluidos. Também desencorajam a perda excessiva de suor e a hiponatremia associada ao exercício. Uma hidratação inadequada pode levar a consequências adversas, tanto físicas quanto fisiológicas, como redução do desempenho e da recuperação. Planos individualizados, por sua vez, atendem à diferenças individuais, dependendo dos fatores extrínsecos (duração e intensidade do exercício, condições ambientais) e intrínsecos (estado de aclimatação ao calor, massa corporal e tamanho).

Entretanto, a cultura - entendida como o conjunto de costumes e crenças de um grupo ou país particular - influencia diretamente a dieta, incluindo as práticas de hidratação. O que acontece quando ela entra em choque com a ciência?

O estudo de Leow e colaboradores, intitulado “Cultural differences in hydration practices among physically active individuals: a narrative review” (Diferenças culturais nas práticas de hidratação entre indivíduos fisicamente ativos: uma revisão narrativa, em tradução livre), publicado no Journal of the International Society of Sports Nutrition, investigou como as diferenças culturais influenciam as práticas de hidratação entre indivíduos fisicamente ativos.

O objetivo principal foi analisar o impacto dessas práticas na reidratação, desempenho e recuperação, através de uma revisão narrativa da literatura. Os resultados revelaram uma grande variedade de práticas, muitas das quais carecem de evidências científicas sólidas que comprovem sua eficácia ou segurança.

Como foi feito o estudo

A pesquisa adotou uma abordagem de revisão narrativa. Os autores realizaram buscas nas bases de dados PubMed e Google Scholar, utilizando termos como “hidratação”, “cultura”, “exercício”, “desempenho” e “recuperação”. Não houve restrições de idioma ou data de publicação. Além disso, as listas de referências dos artigos selecionados foram verificadas manualmente para identificar estudos adicionais relevantes.

E o que o estudo diz?

O estudo destaca que as práticas de hidratação são influenciadas por uma série de fatores culturais:

  • Crenças e tradições: na cultura chinesa, por exemplo, acredita-se que a água morna é mais benéfica para a saúde do que a água fria, mesmo após o exercício.
  • Disponibilidade de bebidas: em algumas regiões, bebidas como açaí (Brasil), suco de cana-de-açúcar (Índia) e beso (Etiópia, bebida feita de cevada torrdaa) são amplamente consumidas devido à sua fácil disponibilidade.
  • Religião: o jejum do Ramadã, praticado por muçulmanos, impõe restrições significativas à ingestão de líquidos durante o dia, o que pode afetar a hidratação de atletas.
  • Preferências pessoais: em países ocidentais, a cerveja é frequentemente consumida após atividades esportivas, apesar de seu potencial efeito diurético. No entanto, cervejas sem álcool, light e as novas “cervejas esportivas” podem configurar uma opção coerente com as práticas de hidratação, devido ao efeito diurético menor e a maior concentração de eletrólitos.
  • Tendências de mercado: no Japão, observa-se uma crescente popularidade de bebidas energéticas transparentes, associadas com o desempenho no trabalho e percebidas como mais saudáveis, possivelmente por conterem menos calorias.

O estudo ressalta que, embora algumas dessas práticas possam ter benefícios potenciais, a maioria carece de evidências científicas robustas que comprovem sua eficácia ou segurança em relação à hidratação, desempenho e recuperação. Muitas dessas práticas, inclusive, são inconsistentes com as recomendações atuais de hidratação.

Relação com outros estudos

Os achados de Leow et al. dialogam com a literatura existente sobre nutrição esportiva e comportamento alimentar. A influência da cultura nas escolhas alimentares e de hidratação é um tema amplamente reconhecido, mas pouco explorado no contexto específico do desempenho esportivo.

Estudos anteriores já haviam demonstrado, por exemplo, que as recomendações nutricionais generalizadas nem sempre são adequadas a todas as populações, devido a diferenças culturais, genéticas e ambientais, como por exemplo no estudo de Shriver e Gates (1994).

Este estudo reforça essa ideia, mostrando que as diretrizes de hidratação também precisam ser adaptadas às particularidades culturais para serem eficazes.

Além disto, o artigo faz referência a estudos que testaram a eficácia de bebidas e práticas específicas, como o consumo de açaí e o jejum de Ramadã, o que permitiu contrapor as descobertas com o que já havia sido produzido pela ciência.

Diretrizes profissionais

Com base nos achados do estudo, os profissionais de Educação Física e da Nutrição Esportiva podem adotar as seguintes diretrizes:

  1. Conhecer as práticas culturais: informe-se sobre os hábitos de hidratação comuns entre seus clientes, considerando suas origens culturais e crenças.
  2. Educar com sensibilidade: explique as diretrizes de hidratação baseadas em evidências, mas faça-o de forma respeitosa, reconhecendo a validade das práticas culturais.
  3. Adaptar as recomendações: quando possível, adapte as orientações de hidratação para acomodar as práticas culturais, desde que não comprometam a saúde e o desempenho.
  4. Monitorar a hidratação: utilize métodos de avaliação da hidratação (cor da urina, peso corporal) para garantir que os clientes estejam adequadamente hidratados, independentemente de suas escolhas de bebidas.
  5. Incentivar o consumo de água como escolha principal para hidratação.
  6. Trabalho multidisciplinar: em casos complexos (atletas de elite, praticantes de jejum religioso), trabalhe em conjunto com nutricionistas e outros profissionais de saúde.

Considerações

A hidratação no esporte é um campo complexo, onde a ciência encontra a cultura. Ignorar as influências culturais nas práticas de hidratação pode levar a recomendações ineficazes e até mesmo prejudiciais. Os profissionais de Educação Física desempenham um papel fundamental na promoção da hidratação adequada, adaptando as diretrizes científicas às realidades culturais de seus clientes. A abordagem deve ser sempre individualizada, respeitosa e baseada em evidências, buscando o equilíbrio entre saúde, desempenho e tradição.

No universo da pesquisa

Este estudo abre portas para diversas investigações futuras:

  • Estudos quantitativos: realizar estudos quantitativos com amostras maiores e mais diversas para avaliar o impacto de diferentes práticas culturais na hidratação, desempenho e recuperação.
  • Estudos qualitativos: aprofundar a análise qualitativa por meio de entrevistas em profundidade e grupos focais para a compreensão de significados e contextos de práticas culturais.
  • Estudos de intervenção: desenvolver e testar intervenções de hidratação culturalmente sensíveis para atletas de diferentes origens.
  • Análise de bebidas tradicionais: investigar a composição nutricional e os efeitos fisiológicos de bebidas tradicionalmente consumidas em diferentes culturas.
  • Impacto do jejum religioso: aprofundar os estudos sobre o impacto do jejum do Ramadã e outras práticas religiosas na hidratação e desempenho de atletas.
  • Desenvolvimento de materiais educativos: criar e avaliar materiais educativos culturalmente relevantes sobre hidratação para atletas e profissionais de Educação Física.

Referências bibliográficas

LEOW, C. H. W. et al. Cultural differences in hydration practices among physically active individuals: a narrative review. Journal of the International Society of Sports Nutrition, v. 19, n. 1, p. 150-163, 2022. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9116399/

HUMENIKOVA SHRIVER, L.; GATES, G. A cross-cultural comparison of dietary intakes and physical activity between American and Czech school-aged children. Public Health Nutrition, jul. 2009. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1017/s1368980008003546