Resumo

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Integra

Só para termos uma ideia da idade deste senhor, a nossa selecção acumula 624 jogos na história. Quando Manuel Sérgio nasce, Portugal só tem 30. Sim, trinta. Aos 86 anos, quase 87 (Abril, aniversários mil), o professor escolhe o Hotel Continental para a entrevista. Ali mesmo ao lado da antiga RTP, na Avenida 5 de Outubro. Toda a gente do hotel o conhece e saúda-o com reverência, desde o cozinheiro até ao dono. Castiço, sempre. Cumprimenta todos com uma graça pelo meio e sai airosamente para o restaurante.

No outro dia, ouvi-o na RTP3. Falava do seu primeiro jogo ao vivo e a cores.

Benfica-Académica, final da Taça de Portugal 1939. Nas Salésias, então o único relvado em Portugal.

Foi com quem?

À boleia do meu pai, que era guarda republicano.

E que tal esse jogo?

Só tinha seis anos, lembro-me da emoção de ir ao futebol e da grande balbúrdia da Académica no final do jogo. Acabou 4-3.

E depois?

Depois? Fui para casa.

A pé?

Morava a uns 500 metros.

Maravilha.

Nesse tempo, tínhamos um grande jogador.

Tínhamos?

O Belenenses, ora essa. Sou Belenenses.

Muito bem. Quem era o craque?

Mariano Amaro, estilo Rui Costa. O Perfeito Rodrigues, que jogava lá na frente, dizia-me sempre ‘mal arranco, nem olho para trás porque sei que o Mariano veai meter-me a bola à minha frente’. O Mariano era extraordinário. Fazia meio-campo com Amaro Gomes e Serafim. Fomos campeão nacionais em 1946.

Também viu o jogo desse título de campeão?

Em Elvas? Nem pensar. Ouvi pela rádio e fiquei à e+sera dos jogadores em Belém. Foi cá um festa que nem lhe conto. Inesquecível. Como inesquecível foi também a estreia do Matateu.

Estava lá?

Estava, sim senhor. Quatro-três ao Sporting, o Matateu meteu dois golos. Mal acabou o jogo, o público levou-o em ombros para fora.

Do campo, diz?

Do estádio. O Matateu saiu do Restelo em ombros. Foi cá um dia. O Matateu era um fenómeno. Fora do campo, um crédulo. Dentro dele, um avançado imparável. Na grande área, digo-lhe, foi o maior. Recebia a bola, dava um toque para afastar-se do defesa e tinha um pontapé indefensável. Era golo pela certa. Que loucura.

E o Manuel Sérgio no meio dessa loucura.

A minha mãe tinha um medo de pânico de me perder; não me queria deixar ir para o meio da multidão. Só ia ao futebol com o meu pai em serviço.

O seu pai, que tal?

Chegou a Lisboa em 1920, um ano depois do nascimento do Belenenses. Veio de chaves, serviço militar e tal. Era analfabeto, fez a terceira classe na Guarda Republicana.

E a sua mãe?

Era criada de servir, como se dizia antigamente, Boa gente, os meus pais, mas sem cultura. Sou assim uma espécie de milagre; nao havia um livro em casa, só o livro da missa. A minha mãe queria que eu fosse para padre, que era o safanço dos pobres. Entro num colégio para padres em Santarém, onde estou três anos.

E?

Expulsaram-me.

A sério?

Epá, não tinha jeito para aquilo. Só falava do Belenenses e da Amália Rodrigues. O meu mundo não era aquele.

Seguiu-se o quê?

Entrei em 1968 para o INEF [Instituto Nacional de Educação Física] e comecei a estudar a sério. Eu sei pouco, mas o que sei foi de estudar a sério.

E continuava a ir às Salésias?

Na altura já era Restelo. Foi a grande asneira do Belenenses. O Soares da Cunha, um grande salazarista, queria fazer do Belenenses uma grande equipa e faz-se o estádio, só que o Belenense nunca teve massa associativa para encher aquilo. Gastámos aquilo que tínhamos e o que não tínhamos.

Compreendo. Ia ao Restelo, então?

Claro. Belenenses, sempre. Vi o primeiro jogo do Eusébio no Restelo. Acaba 1-1, acho. Marcam Peres e Eusébio. Às tantas, o Eusébio passa o meio-campo e atira uma bola que bate na trave e volta para ele. Ficou tudo palerma. O gajo era qualquer coisa. No caminho para casa, acompanhou-me o guarda-redes José Pereira. Até ele estava incrédulo. ‘Ò senhor Manel, já viu o coice do preto? Ele atirou cá uma brasa.

...

Sabe quem via às vezes no Restelo?

Nem ideia.

O Jesus Correia. Ele ia ver o Belenenses. Um dia, isto é engraçado, estava eu na Direcção Geral dos Desportos e aparece-me o Peyroteo. De repente, também apareceu o Jesus Correia. Isso foi em 1975. Os dois começam a flaar daquele 6-3 do Sporting em Madrid, no campo do Atlético Aviación, agora Atlético Madrid. É um jogo histórico, porque o Jesus Correia marca todos os seis golos do Sporting. Palavra puxa palavra e o Peyroteo diz-lhe ‘só marcaste cinco, o outro é meu, porque a bola ainda não tinha passado a linha quando encostei-a para a baliza’.

Ahahahahah.

O Peyroteo era um calmeirão. Parado, um fenómeno. Em andamento, nem queria saber. Ele arrancava e mais ninguém o apanhava. Vi-o uma vez na Tapadinha, ganhou o Sporting ao Atlético por 3-0. O primeiro golo é do Jesus Correia, antes do primeiro minuto. Nem me tinha sentado, veja lá.

Cinco Violinos, portanto.

E o Travassos? Tinha cá um pontapé. O Artur Agostinho disse-me uma vez: ‘a melhor coisa do futebol é o remate dp Travassos a 40 metros da baliza’. E era, de facto. A propósito do Travassos, dou-lhe o onze ideal da minha vida.

Chute.

Bento / João Pinto, Humberto Coelho, Ricardo Carvalho e Hilário / Figo, Coluna e Travassos / Matateu, Eusébio e Ronaldo

E viu todos?

Todos, todos.

Ficam de fora alguns ilustres, imagino. O Rogéro Pipi, por exemplo.

O Rogério era de uma souplesse como nunca vi. Era um jogador circense. Que marcava golos atrás de golos. Outro jogador extraordinário era o Espírito Santo. Acredita que o vi bater o recorde nacional do salto em altura nas Salésias?

Acredito.

Ahahahah. Pois bem. Ele bate o recorde, 1,88 metros de altura, e depois entra em campo para jogar o Belenenses-Benfica. Tudo na mesma tarde.

Outros tempos.

Tinha um salto exemplar, o Espírito Santo. Mas o gajo mais elegante que vi a saltar foi o Artur Jorge, seguido de perto pelo José Águas. Esta é boa, um dia vi o Águas apanhar tanto do Feliciano. Atenção, o Feliciano era uma das torres de Belém e eleito um dos melhores centrais da Europa. Só que apanhou, para variar, um 9 muito tecnicista. Bem, nem imagina, o Águas apanhou tanto bardoada. Faz-me lembrar outra história, entre o Feliciano e o Peyroteo num Beleneses-Sporting. O Peyroteo queixou-se ao Mariano Amaro sobre o tratado do Feliciano e o Mariano Amaro, como capitão, foi dizer das boas ao Feliciano. Sabe o que lhe disse?

Diga.

Continua assim, Feliciano. Ahahahah. Esta sei bem porque o próprio Mariano Amaro contou-me. Costumávamos almoçar no Chagão, ali na Pinheiro Chagas. Quem também estava nesse almoço era o Acácio Rosa, figura ilustre do Belenenses.

Conheço-o bem, claro. Fez tudo e mais alguma coisa, até livros do Belenenses.

Nem mais. Foi o primeiro seleccionador do andebol de 11, é ele quem traduz as primeiras regras para o português. Um dia, Portugal vai ao Mundial do andebol de 11. No primeiro jogo, ao intervalo, já está 5-0. Há quem lhe pergunte, ‘ò Acácio, e agora?’ A resposta dele ainda hoje é célebre: ‘Agora é tudo ao molho e fé em Deus’.

[toca o telefone, Manuel Sérgio atende e diz de sua justiça ‘ò meu amigo, faço isso para si sem problema nenhum (...) lembra-se da frase do Fernando Pessoa: ‘merda, estou lúcido’ (....) fique descansado]

É só rir. Grandes história, grandes memórias.

Vi muita coisa, sabe? Em 1955, estava nas Salésias quando o Martins lixou-nos o campeonato, na recarga a um remate do Mokuna, o fura-redes. Três anos depois, estava em Alvalade, para ver o Brasil. Queria ver o Pelé, vi o Gaaaarincha. Que monumento. Perguntaram ao Hilário se lhe tinham trocado os olhos, veja bem.

E a selecção nacional?

Lembro-me de um 3-0 à Suíça nas Salésias. Lembro-me do quintento ofensivo como se fosse hoje: Mourão, Alberto Gomes, Peyroteo, Pinga e Cruz. Também me lembro de um tempo em que a selecção era mais conhecida como Sport Lisboa e Araújo, porque jogavam 10 futebolistas de clubes lisboetas e o Araújo, do FC Porto. Que era um jogador muito bom. Em 1961, na Faculdade de Letras, eu tirei filosofia e o David Sequerra, história. O David era o seleccionador nacional dos juniores e Portugal recebeu o Europeu desse ano.

Ganhámos, não foi?

Quatro-zero à Polónia, na final. Quatro golos do Serafim. Embora tivéssemos a tirar cursos diferentes, tínahmos uma disciplina em comum: teoria da história. Apanhei o David Sequerra no dia em que ele ia comunicar os convocados à comunicação social e falei-he do Fernando Peres.

Do Belenenses, suponho.

Ora bem, vê como sabe. Ele já o conhecia, óbvio, e disse-me que havia um ponta esquerda ainda melhor. Chamava-se Simões, jogava no Benfica. Encaxei bem, ahahahah. Sabe, dei aulas de francês ao Peres.

Fantástico. O seleccionador era o David Sequerra, o treinador de campo era o Pedroto, certo?

Nem mais. Conheci bem o Pedroto, cheguei a acompanhá-lo em estágios, a pedido dele. Quer dizer, não estavávamos no mesmo hoitel, ficávamos perto um do outro. Eu defendia a tese do racionalismo, criado no século XVIII. Há um livro muito especial a esse propósito, chama-se ‘O Nascimento da Clínica’. Li-o e fiquei com umas ideias, que as defendia em conversas privadas.

Quais ideias?

Não há educação física, há é o movimento de pessoas no movimento da transcendência. Futebolisticamente falando, qual é o tipo de homem que quero para este treino? A periodização táctica é antropológica e táctica, depende dos homens. Puro e duro, sabe? O treino depende do homem. O jogo também.

Estou a ver.

Uma vez, vi o trerinador italiano Rino Martini, do Belenenses, com uma barra de exercícios no meio-campo. Para quê? O treino tem de ser igual ao jogo. Meter obstáculos só para actividade física de nada vale.

É aquela máxima

Não há jogos, há pessoas que jogam. Não há chutos, há pessoas que chutam. Ou seja, o treino é da pessoa, não é do físico e o Pedroto ficou agradado com essa perspectiva. E descobriu o paradigma. Só que naquele tempo só o ex-jogador é que podia treinar. Não era um marreco qualquer que ia dizer que o treino estava errado. Num congresso de medicina em Espinho, ano 1979, o Pedroto apresentou-me a sua filha. Estava ela no segundo ano. Lembro-me bem. Quer dizer, até julgava que era 1981, ela corrigiu-me uma vez. Ahahahah. Seja 1979.

O Pedroto é só o início. Seguiram-se outros treinadores.

O meu amigo está certo. A minha turma era Mourinho, Peseiro. Também dei aulas ao Rui Vitória. O Jesualdo, por exemplo. O Conheci o Jesualdo como aluno no INEF, já sou velho para caraças.

Quanto anos?

Quase 87, com mulher, três filhos, quatro netos e dois bisnetos.

Espectáculooooo. Desses treinadores todos com quem conviveu, fica o quê?

O Pedroto era uma figura curiosa, um tipo muito racional. O Mourinho era um estudioso. Depois o Jesus. Conheci-o no Belenenses, quando ele treinava lá. Costumava almoçar no estádio com o Homero Serpa e o Jesus pediu autorização para participar. Ficou a amizade para sempre. O génio é o desordenado, o meio maluco, o iluminado. É aquele que antecipa e o jesus antecipava tudo nos treinos. Percebi isso no Benfica, quando o via em acção. Há que ter olho e há que ter visão. O jesus junta isso na perfeição, daí o sucesso na carreira. Esta frase fez-me lembrar uma cena com o Pietra, ainda no Belenenses. Mal o vi jogar, disse ‘este miúdo não engana’. E não enganou ninguém: do Belenenses para o Benfica, do Benfica para a selecção.

Benfica, bem lembrado. E aquele futebol dos anos 60?

Irrepetível. Era uma equipa verdadeiramente homogénea, com um génio (Eusébio) e um quase génio (Coluna), fora os outros extraordinários. Nenhum jogador deste Benfica entrava nesse Benfica. Nenhum. Digam o quiserem. Eram bons tempos. Os do futebol e também do hóquei. Se bem que aqui era diferente, porque a competitividade era reduzida. Havia duas ou três equipas e Portugal era a melhor de todas. Sei a equipa de cor e salteado. Elísio, Raio, Sidónio, Correia dos Santos, Jesus Correia e Olivério (depois Edgar, do Sintra). Ouvíamos os relatos na rádio, através do Amadeu José de Freitas, o pai do José Manuel.

Que histórias.

E ainda nem falei do Brasil.

Como assim?

Dei aulas no Brasil, em Campinas, São Paulo.

Quando?

Em 1987 e 1988, na Unicamp. Vieram buscar professores à Europa e eu fui como professor de educação física.. Conheço o Brasil de norte a sul, de Fortaleza até à Foz de Iguaçu. Assisti ao nascimento do PT e fui há pouco à festa dos 30 anos: quando vou entrar, metem-me uma pulseira vermelha. Nos discursos, dizem que não há classes neste partido. No fim, dizem que há comida lá em baixo: couratos, torresmos, pão e cerveja. Eu, como convidado, fui por um corredor e entrei numa sala diferente, e havia de tudo, até caviar, champanhe. Um luxo, tudo o que meu amigo quisesse.

E futebol no Brasil?

Ia ao futebol todos os domingos. Ou via o Guarani, na 1.ª divisão, ou via o Ponte Preta, na 2.ª. Isto em Campinas. Congeci figuras como Telé Santana, Careca, Müller. E o Sócrates que era todo PT. Ele aplicava-lhe na cerveja que não era brincadeira e era um gajo fora de série, com uma cultura anormal para um futebolista. Também convivi com o Rivellino. Vi um Brasil-Uruguai em Porto Alegre. Sabe o quera mais espantoso no Brasil?

O quê?

O futebol de várzea. Vêem-se génios da bola. Autênticos génios. Digo-lhe.

 

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