Integra

Lendo ontem o livro Ulisses, o herói da astúcia, de Maria Zélia de Alvarenga e Sylvia Mello Silva Baptista, da coleção Heróis e Heroínas da Mítica Grega, tive algumas ideias luminosas. É muito bom poder ter tempo para poder ler coisas interessantes e deixar a imaginação rolar.

Essa semana foi muito intensa com o volume de trabalho de sempre e novidades que ainda não sei avaliar bem em que direção vão, mas, aí acontecem encontros com ideias, textos, pessoas que sugerem essa instância mítica do acaso, ou da sincronicidade, como diria Jung.

Meu encontro com Homero e com Ulisses (Odisseu, em grego) se deu ainda em meu doutorado, quando estudei a relação entre a figura mítica do herói e a formação da identidade do atleta. Lembro-me de ter lido a Odisseia inúmeras vezes e do encanto que esse herói me causou. Sua astúcia e persistência em buscar seu objetivo (o retorno a Ítaca) permaneceram vivas em minha memória mesmo depois de terminada a tese. É muito bom pensar que uma atitude heróica está para além da força e da coragem para a guerra. Muitas vezes desenvolvemos a habilidade para a sobrevivência superando as dificuldades, as adversidades e isso envolve paciência, humildade, inteligência, características pouco relacionadas com um herói e essas são as grandes virtudes de Ulisses.

No doutorado já fiz uso das histórias de vida, mas tinha que me prender a autores que fundamentassem minha análise, afinal eu ainda não podia pensar por conta própria e para isso aquele título me valeria. Por isso caminhei com Joseph Campbell e Gilbert Durand pelos caminhos do Herói das mil faces e das Estruturas antropológicas do imaginário. Quando fui fazer a livre docência, e a tese era sobre os Medalhistas Olímpicos Brasileiros, lembro-me do quanto penei em busca de uma justificativa para aquelas tantas histórias. Eu não queria categorizá-las, compartimentalizá-las, recortá-las como tecido para compor uma colcha de retalhos. Não queria que delas fossem retiradas falas recortadas para algum tipo de análise de discurso ou de conteúdo. Queria ser o mais fiel possível às narrativas porque nelas encontrava o texto e o contexto. E assim nasceu Heróis Olímpicos Brasileiros e Medalhistas Olímpicos Brasileiros: memórias, histórias e imaginário. Como já era doutora podia cometer a ousadia de propor meu próprio método, muito embora corresse o risco de ser trucidada pela banca. Depois de sobreviver a esse momento, o que me pareceu a passagem de Ulisses por Cila e Caríbdis, passei então a me dedicar a estudar as histórias de vida dos atletas olímpicos brasileiros, apurando a pesquisa para que as narrativas pudessem ganhar forma, afinal elas não são menos fantásticas do que as tantas aventuras mitológicas.

Parece simples dizer isso quando se trabalha arduamente dentro de uma perspectiva metodológica por quase 15 anos, e de fato o é. Mas, isso não parece assim tão simples para os meus orientandos que questionados, as vezes de forma positiva, mas muitas vezes de forma destrutiva, não sabem muito bem como se defender de tantos ataques. Eles então partem em busca de muitas outras referências teóricas seja na História, na Sociologia, na Filosofia e mesmo na Psicologia para se sentirem mais seguros para enfrentar os tantos embates, seja nas disciplinas que cursam nas unidades da universidade, seja ainda em congressos de diferentes áreas temáticas. Nossa última reunião foi uma prova disso. Gastamos toda uma manhã discutindo um texto de um historiador para falar sobre como a história oral é vista dentro da História. E isso me fez relembrar o doutorado quando eu tinha dúvidas se me referiria ao meu objeto como estórias de vida ou histórias de vida, só para fugir dessa cilada e evitar perda de tempo com discussões estéreis sobre a validade ou não de tudo aquilo.

E assim volto ao livro de Maria Zélia e Sylvia lido ontem à noite, à luz e ao calor de uma lareira em Campos de Jordão, um dia depois dessa longa discussão. Leitura feita sem pressa, sem marca texto, nem computador para fichamento. Era uma leitura para mim e não tinha qualquer outra finalidade senão me proporcionar o prazer de ler para a alma. E assim como alguns deuses pontuam o caminho dos heróis lá estavam algumas passagens interpretativas de Ulisses pautadas na Psicologia Analítica de Jung. Com a competência de quem decifra mistérios fui entendendo com mais clareza o que é de fato escrever ou contar a vida de um atleta olímpico, sem dúvida um herói. Cada um, em sua modalidade e a seu tempo, marcou a história de sua família, de sua cidade e, por vezes, do país. Por isso vamos ao encontro de cada um deles pedindo detalhes, lembranças, coisas miúdas, coloridas, cheirosas, doces, amargas, azedas, enfim, uma mistura de pensamento, sentimento, sensação, intuição, conforme a tipologia junguiana.

Mas, a revelação se fez quando as autoras apontam que o Aedo, cantor e poeta na mítica grega, é a figura mais importante a seguir o herói, sempre poupado nos confrontos bélicos por ser quem leva adiante, pela via da tradição oral, as situações vividas e presenciadas. O Aedo é aquele que canta para os deuses e para os homens. Tanto é assim que ao matar todos os que se encontravam no salão importunando Penélope, Ulisses poupou o Aedo e o Arauto. Justificam as autoras: “é preciso manter alguém para contar, ou cantar, uma história. O Arauto e o Aedo são as melhores figuras para tal função. O cantor e o contador são vistos sempre com compaixão, como se, por estarem a serviço da arte, da manutenção da memória dos feitos e fatos, estivessem acima das disputas e dos lados. Há um enorme apreço pelos cantores, cuja função primeira é a de alegrar e insuflar nos corações palavras doces que encorajem o herói e todos à sua volta. Como o bobo da corte, que tem a licença de tudo observar e tudo falar, o Aedo e o Arauto são representações da consciência na sua faceta não julgadora, com a nobre função de registrar e contar – e assim, eternizar – o vivido”.

Ali estava uma resposta sobre toda essa saga que é a pesquisa sobre os Atletas Olímpicos Brasileiros. Até aqui são 1.680 atletas, antes dos Jogos Olímpicos de Londres. São 1.680 histórias marcadas por renúncias, conquistas, revezes, dor, mas todas elas realizadas por alguém mortal que foi capaz de sair da média, e pela excelência, se aproximar do divino realizando um feito heróico. Muitas delas já caídas no esquecimento, pelo véu espesso do tempo que apaga até memórias mais agudas.

Percebi que nesse sentido somos uma espécie de Aedo, com perfil acadêmico, que busca recontar essas histórias, reacendendo a chama que cada um desses atletas, a seu modo e a seu tempo, viu acesa, luminosa, numinosa. Temos esse perfil acadêmico porque retiramos das histórias muitas informações que se tornam dado de análise e nos permite fazer uma leitura atenta e apurada do desenvolvimento do esporte olímpico brasileiro.

Mas, entendi depois dessa leitura, que o combustível e o motor de tudo isso é a possibilidade de manutenção da narrativa sobre os feitos olímpicos. Perpetuando como a mitologia os feitos heroicos de todos os atletas.

Confesso que estou cansada de querer provar que isso é ciência. Já não tenho mais paciência para afirmar e reafirmar que podemos assim contribuir para uma outra metodologia dentro das ciências humanas, em que o ser é o mais importante e evidente material de uma pesquisa.

Sinto que, depois de tudo, é muito confortável afirmar que sou sim uma contadora de histórias.

ALVARENGA, M. Z.; BAPTISTA, S. M. S. Ulisses, o herói da astúcia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
RUBIO, K. Heróis Olímpicos Brasileiros. São Paulo: Zouk, 2004.
RUBIO, K. Medalhistas Olímpicos Brasileiros: memórias, histórias e imaginário. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

Por katiarubio
em 22-04-2012, às 21:51

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Comentários

Cara Kátia, li com avidez esses dois últimos textos de seu blog. Sou uma total inapta para o esporte mas vejo nessa atividade uma beleza ou belezas que como psicóloga tento compreender e sobretudo apreciar, deleitar-me. Sou sã de alguns esportes mais que de outros. Mas sou mais inclinada aos não heróis, a quem não é herói olímpico mas escolhe o esporte como atividade da vida, da sobrevivência. Tampouco sou dedicada ao estudo do esporte mas isso me cativa…Como método de pesquisa estou perseguindo as histórias/narrativas e por essa razão, sendo ciência ou não, seu trabalho também me prendeu e que bom sem ser algo do dever de fora pra dentro mas do dever que se impõe de dentro pra fora.

Ana
Os atletas olímpicos só são um pouco mais visíveis. Mas, todos que de alguma forma buscam superar as próprias limitações são, de alguma forma, uma espécie de herói. Campbell falava que o maior ato de heroismo do ser humano é o momento do nascimento quando abandonamos a tranquilidade de líquido aminiótico e passamos a respirar com os próprios pulmões. Obrigada pela colaboração.

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