Integra

                Quando, em finais do ano passado, os professores da Universidade Católica Portuguesa (UCP), Doutores José Tolentino Mendonça (hoje, a trabalhar no Vaticano, junto do Papa Francisco) e Alfredo Teixeira tiveram a bondade de convidar-me, para um almoço, num dos restaurantes da UCP, nasceu em mim a íntima convicção de que ambos se preparavam para entregar-me a regência de uma disciplina. Teria de rejeitar o honroso convite, pela minha saúde precária e a de minha mulher que, para locomover-se, precisa de apoio constante e solícito. Afinal, mais do que a regência de uma “cadeira”, o Doutor Tolentino Mendonça adiantou-se e afirmou, com uma alegria bem igual à cândida alegria das almas sãs: “O professor Alfredo Teixeira e eu lemos três livros da sua autoria, Para uma epistemologia da motricidade humana e Algumas teses sobre o desporto e O futebol e eu, acompanhamos o que escreve na imprensa e, depois de termos consultado outros universitários de vários ramos do saber, decidimos propor à Doutora Isabel Capeloa Gil, magnífica reitora, que se criasse na UCP a Cátedra Manuel Sérgio. E queremos saber agora se o meu amigo levanta críticas ao que pretendemos fazer”. Vacilei, tremeram-me os lábios, uma lágrima de gratidão aflorou, estremeceu e murmurei: “Só posso agradecer a vossa lembrança. Filho de gente pobre, com 27 anos ingressei na Faculdade de Letras de Lisboa e trabalhando simultaneamente nos armazéns do Arsenal do Alfeite”. E ainda acrescentei, indistintamente: “Nunca me ocorreu sequer que me coubesse, algum dia, tamanha honra. Mas que hei-de eu fazer, senão agradecer e agradecer desvanecido?”. Passados poucos dias, novo telefonema. Desta feita, era o Dr. José Lima, funcionário do IPDJ (Instituto Português do Desporto e Juventude) e particular amigo dos professores Tolentino Mendonça e Alfredo Teixelra  a informar-me: “A Reitora da UCP concordou  com a proposta da Cátedra, ou seja, acrescentou à proposta um nihil obstat”. E, após uma ligeira pausa, rematou: “Podemos começar a pensar na criação da Cátedra Manuel Sérgio”.

                Porque o Doutor José Tolentino Mendonça estava em vésperas de seguir para Roma, imediatamente nos reunimos, o Tolentino Mendonça, o Alfredo Teixeira, o José Lima e eu, para escrevermos as linhas de investigação da Cátedra… que são estas:

        1. Da Epistemologia à Ontologia e a Ciência da Motricidade Humana (CMH), como uma                      ciência hermenêutico-humana e como pretexto para um novo conhecimento do ser                          humano. Um corte epistemológico: do físico à complexidade e motricidade humanas,                        passando por um conceito de movimento demasiado vago e abstrato.
        2. O cartesianismo, o cientismo, o positivismo, no treino, no desporto e na dança. Pensando o              treino com Edgar Morin. O desporto atual reproduz e multiplica, demasiadas vezes, as                      taras do economicismo ambiente. E, por isso, onde ninguém ganha porque vale, mas vale                porque ganha.
        3. A vida e o desporto, como movimento intencional e solidário da transcendência, rumo ao                                      Absoluto. O Padre Teilhard de Chardin e o Padre Manuel Antunes.
        4. O desporto, uma práxis física e sapiencial e portanto mais do que científica. Não há educação integral                sem desporto. A CMH, numa nova Lei de Bases do Sistema Educativo.
        5. A Ética, núcleo essencial da prática desportiva. O desporto não deverá percecionar-se como um “fim-                  em-si-mesmo”, mas como instrumento ao serviço daqueles valores, sem os quais impossível se torna                viver humanamente. A transcendência, no desporto e na dança.
         6. A Motricidade Humana (como movimento intencional e solidário da transcendência) e a Dança.                           Técnicas Somáticas e Práticas Performativas.

        A Motricidade Humana, como eu a teorizo e estudo, procura fazer um “corte” com a filosofia e a ciência clássicas, realçando no corpo as suas imensas virtualidades, designadamente no movimento intencional e solidário da transcendência. A filosofia da Idade Moderna, que desponta, a partir do século XVII e chegou aos nossos dias, encarnada numa crença férvida e persistente, podemos denominá-la “filosofia da consciência”. O dualismo cartesiano tornou-se, assim, o saber orientador, também para o conhecimento científico. Daí, o biologismo reinante, até finais do século XX, na Medicina e na Educação Física e no Desporto. E ainda no exercício físico e na atividade física: a atividade física definida como “todo o movimento corporal, produzido pela musculatura esquelética e que resulta em gasto energético, acima dos níveis de repouso” e o exercício físico entendido como “uma das formas de atividade física planejada, estruturada e repetitiva, tendo por objetivo a melhoria da aptidão física ou a reabilitação orgânico-funcional” e apresentando ainda níveis moderados ou intensos e natureza estática ou dinâmica. O exercício e o treino são categorias conceptualmente distintas, mas não de natureza diferente, dado que, entre elas, não se vislumbra descontinuidade. Com efeito, exercício e treino são verdadeiramente irmãos. Mas onde o antropossociológico e o espiritual estão presentes em ambos e não só o físico e o biológico. Temos muito a aprender com o universo: assim o ensinou o Padre Teilhard de Chardin.  Em toda a sua obra passa a convicção de que a Terra é um superorganismo vivo que, em nós, seres humanos, se transforma em consciência e em transcendência, em comunicação e em linguagem, em oração e celebração. “Jamais devemos esquecer, como o refere o Prof. Leonardo Boff no seu livro A Voz do Arco-Íris, que entramos em cena, quando já 99,98% da história do Universo e da Terra se haviam completado” (pp. 130/131).         

                Mais nos ensina o Universo. É que ele funciona como um sistema aberto e acolhe tudo o que desponta novo e diferente. Outra lição do Universo que importa reter: a solidariedade, pois que todas as criaturas dependem uma das outras. A lei orientadora que regula a evolução dos animais, das mulheres e dos homens não realça a sobrevivência dos mais fortes, mas um equilíbrio dinâmico onde todos caibam fortes e fracos, sãos e doentes, aptos e menos aptos. “Na era das viagens espaciais, o homem também se questionará, quando pondera sobre os espantosos resultados da astrofísica e quando, como sempre o fez, contempla o céu noturno estrelado: o que é tudo isto? De onde vem o todo? Do nada? Mas o nada explica alguma coisa? A razão satisfaz-se com o nada, como razão última? A única razão alternativa séria que a razão pura não consegue demonstrar, porque ela supera o seu horizonte de experiência, mas que tem bons fundamentos para tal, é uma resposta completamente racional: oi todo não provém apenas de uma explosão inicial, mas de uma fonte original” (Hans Kung, O Princípio de todas as coisas, Edições 70, 2011, pp. 137/138). Quer dizer este autor, aliás um esclarecido teólogo que a ideia de um Deus criador é o mais lógico pressuposto de todos os modelos, que se conhecem, do universo. Para mim, onde o próprio caos resulta num “cosmos” organizado, há com toda a certeza uma Inteligência prévia ao universo, reguladora do universo. E, porque o universo tudo acolhe e transforma, dele podemos colher algumas lições: é preciso respeitar todas as mulheres e todos os homens, elementos imprescindíveis da Criação; e respeitar também a natureza exterior (aqui incluo os animais) à humanidade, pois que sem ela não podemos viver, não podemos estar, não podemos ser. Não, não fomos arrancados absurdamente do nada. A vida tem sentido. E, para mim, o sentido é a transcendência. Aqui, começa a “Cátedra Manuel Sérgio”.