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A CULTURA DO LÚDICO E DO MOVIMENTO DOS RAMKOKAMEKRA DE ESCALVADO

 

LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ

Sócio efetivo do Instituo Histórico e Geográfico do Maranhão

 

A comunidade científica da área da Educação Física e dos Esportes tem vivido, nos últimos anos, uma crise paradigmática. A episteme tem sido motivo de reflexão na tentativa de estabelecer um referencial teórico que torne a “prática” mais “científica” e a conseqüente aceitação da Educação Física como Ciência.

Tendo acumulado uma postura voltada para o esporte, fez deste um fim em si mesmo – e seu objetivo principal – esquecendo-se que o substantivo – educação – é mais importante que o adjetivo – física. Parece-nos que a educação física precisa descobrir que pertence à cultura do homem.

Alguns pensadores  – como Manuel Sérgio VIERA E CUNHA, SANTIN, MEDINA, FREIRE, CASTELLANI FILHO -, dentre outros, têm-se voltado para o aspecto histórico-cultural – têm “filosofado” – sobre a questão do esporte, do jogo, enfim, da importância que o lúdico assume na prática da educação física. Não é fato novo, nem tende a se esgotar.

O “corpo” começa a ser descoberto na sala de aula do professor de educação física. A educação só é possível se for de “corpo inteiro”. É o que demonstra a recente produção acadêmica, voltada para os aspectos filosóficos, na busca de um referencial para a prática da sala de aula, procurando deixar de lado a concepção de “adestramento” que nossa profissão assumiu – por influência da missão militar francesa, introdutora da educação física no Brasil nas décadas de 30/40. Ainda hoje “pensamos” sobre um modelo “importado” enquanto estudiosos de outros países vêm buscar junto aos nossos índios respostas à questões básicas.

É o que vêm fazendo  DIECKERT e MEHRINGER junto aos Rankokamekra do Escalvado. Estes pesquisadores alemães – o primeiro, professor de educação física especialista em lazer, o segundo, etnólogo – procuram esclarecer questões antropológicas e esportivas sobre a origem e o sentido da cultura corporal, do movimento e lúdica e as suas respectivas formas de expressão e etnológicas no contexto intra e intercultural.

Buscando atingir aos objetivos que se propuseram, necessário se fez entrar em um acordo sobre os procedimentos metodológicos e a uma concepção integrativa das duas disciplinas científicas – Ciência do Esporte e Etnologia – que se unem em torno da posição básica da ciência humana. Procuram, através de registro de dados, captar e interpretar fenômenos do “ponto de vista interno” onde buscam desenvolver uma concepção da compreensão integrativa comum (procedimentos quantitativos).

Usaram,  para a coleta dos procedimentos qualitativos, a observação com protocolo de movimentos; observação participativa; registro audio-visual, escrito de mitos / histórias / textos de cantigas; entrevistas (abertas, diretivas, comparativas) e protocolos das conversações, confecção de desenhos/pinturas como também a coleção de material cultural correspondente.

Esses dados possibilitaram uma introdução na “perspectiva interna do fenômeno corporal e do movimento”, além de comporem um documento histórico, que, comparados com outras fontes de épocas diferentes, forneceram esclarecimentos sobre a dinâmica cultural, principalmenete no que diz respeito à cultura do movimento dos índios Canelas.

Encontram como exemplo da cultura do movimento desses índios – os Rankokamekra de Escalvado, como se denominama corrida de toras, realizada tanto por homens como por mulheres.

Para se entender toda essa dinâmica cultural, necessário se faz compreender o modo de vida dos Canelas: seu espaço vital – meio ambiente natural e a aldeia; sua história; seu sistema cultural – religião, organização cultural, economia.

A corrida de toras – e as corridas de revezamentos – , no contexto ritual, não aparece apenas nos Canelas, mas é uma característica de outras tribos. Na aldeia do Escalvado, Dieckert e Mehringer observaram cerca de 50 corridas durante três meses de expedição, sendo três de mulheres. Foram observadas três distâncias: corridas longas – 20 a 40 km; corridas médias – 4 a 5 km; e corridas na aldeia – 850 m. Tipo, forma, função, significado, etc., das corridas de tora só se tornam compreensíveis através do conhecimento e análise das regras. Elas constituem-se o caráter das corridas.

A “competição” entre dois grupos masculinos duais opostos, que se formam a cada início de ciclo festivo, durante o período de seca, pertence à regra central. Durante a festa de “Pepkahac” eram o grupo “Hac” (Falcões), com 24 homens entre aproximadamente 18 e 50 anos de idade e o grupo “Cojgaju” (Patos), com 27 corredores. O objetivo da competição é transportar a tora, fazendo trocas entre os corredores-carregadores o mais rápido possível, entre a partida e a chegada, onde ela deve ser jogada. O objetivo  da corrida é: VENCER.

A tática da corrida é estabelecida entre os corredores de um mesmo grupo, para não se perder tempo durante o transporte, ou na troca de ombros, ou para se evitar que a tora seja derrubada, ou que um corredor caia por cansaço. Tudo determinado pelos líderes e sub-líderes, escolhidos pelo “Conselho dos Mais Velhos”.

Embora o objetivo seja vencer o grupo adversário, um dos corredores do grupo “Hac” informou aos pesquisadores que ele sempre procura não correr muito mais rápido do que o adversário. Isso poderia causar inveja e, também, haveria o perigo de um “feiticeiro” o castigar.

Para a realização da corrida de toras há todo um ritual a ser seguido, onde os corredores-carregadores, nem todos os homens ou jovens da aldeia, passam por um período de jejum e provas, por fortificação através de plantas, pintura corporal e a determinação, por parte do “Conselho dos Velhos” de como, quando e porque será realizada a corrida, tudo de acordo com a “Lei dos Bisavós”. O peso das toras situa-se entre os 70 e 120 kg.

As corridas de toras são apenas uma competição de corridas dos índios Canelas. Também foram observadas corridas de revezamento e competição de corridas sem toras ou bastão de revezamento. Durante os diferentes ciclos festivos acontecem outras formas de corridas rituais: “As corridas de toras são, sem dúvidas, a forma de expressão mais marcante da cultura do movimento. Já a apresentação  reduzida das formas e regras, como também dos significados religiosos e dos rendimentos físicos deixa reconhecer que elas são algo muito mais do que apenas ‘amusements’, como Nimuendajú (1946) as descreve”, concluem os pesquisadores.

Para Dieckert e Mehringer é através da criação e da valorização da forma cultural da corrida de toras que os Canelas fizeram com que os princípios da “individualidade” e da “solidariedade” se tornassem a  base para a sua sobrevivência física e social. Em oposição à muitas outras tribos indígenas, que também vivem sobre a influência dos brancos fazem 200 anos, os Canelas puderam conservar de forma admirável grande parte de suas tradições, como também de seus sistemas de normas e de valores. Perguntam: será que a dominância cultural  das corridas de toras teria contribuído para tal ?

 

 

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