Apresentação no colóquio Manuel Sérgio em Lisboa   Motricidade Humana Brasil·Quarta, 29 de março de 2017   https://www.facebook.com/notes/motricidade-humana-brasil/apresenta%C3%A7%C3%A3o-no-col%C3%B3quio-manuel-s%C3%A9rgio-em-lisboa/1426466867375321     Apresentação oral – João Batista Freire     Com uma pequena calculadora posso dar provas da tese do Prof. Manuel Sérgio. Quantas horas passa uma criança todos os dias sentada dentro de uma sala de aula? São quatro horas diárias. Quantos dias por ano ela tem que ficar dentro dessa sala, assistindo aulas? São duzentos dias por ano. Por quantos anos isso acontece? Entre Ensino Fundamental e Ensino Médio, ou seja, o ensino básico, são doze anos. Em que posição a criança fica quando está em sala de aula? Sentada e imobilizada numa carteira escolar? E qual espaço ela tem à disposição nessa carteira? Aproximadamente 50cm ou 60cm quadrados. Minha pequena calculadora, operando uma simples conta de multiplicação diz-me que são consumidos nessa sala de aula, nessa posição, nesse espaço, 9600 horas dos anos mais férteis de aprendizagem de um ser humano. Nada nega mais o corpo que somos neste mundo que a escola. Nem as prisões, nem os hospitais, nem os quarteis ou qualquer outra instituição. Aprende-se na escola que não somos corpo, mas sim que temos um corpo. E que, aquilo que verdadeiramente somos, é que está sendo educado, por isso podemos abrir mão do movimento, da motricidade. Pois que, para a escola, e, de resto, para a civilização ocidental, não somos um corpo, temos um corpo. É quando vem o Prof. Manuel Sérgio e anuncia, com sua proposta de ciência da motricidade humana, que nós não temos um corpo, posto que somos um corpo. Para estar neste mundo, para manifestar a vida de que somos dotados, precisamos ser corpo, precisamos encarnar. E para realizar a intenção de viver precisamos nos mover. É a motricidade que realiza a vida. Sei que o sistema de ensino não aceitaria a tese que estamos apresentando, posto que aceitá-la tornaria essa escola obsoleta. Mudaríamos toda a perspectiva do ensino. Se somos corpo e para realizar a vida temos que nos mover, a escola teria que mudar sua arquitetura para favorecer a motricidade, coisa que dificilmente fará. Porém, para que um dia essa mudança tenha maiores possibilidades, temos que fortalecer nossos argumentos. Vamos a alguns deles, portanto. Quando leio os textos sobre desenvolvimento da criança, especialmente os que são estudados nas faculdades de Educação Física no Brasil, algo que muito chama a atenção é a formação das coordenações motoras. Consumimos um bom tempo na universidade estudando as chamadas coordenações motoras, isto é, as ordens responsáveis pelos inumeráveis movimentos humanos, desde o nascimento da criança. Porém, quando passei a observar mais detalhadamente as crianças, o que mais me chamou a atenção não foram as ordens, mas as desordens muito evidentes nas expressões do recém-nascido. À exceção dos movimentos reflexos, dos quais destacarei quatro, todo o resto é como se se tratasse de um caos de gestos dirigidos a nada. Na comparação com o nascimento de outros animais, a diferença é brutal. De qualquer maneira, na comparação com os outros animais, mesmo a gestação mostra diferenças enormes. O feto humano é absurdamente grande no ventre de uma mãe pequena. E durante nove meses, a pressão da gravidade sobre essa mãe bípede é tão grande que o bebê nasce como se o fizesse prematuramente. Ao nascer, é como se o bebê mostrasse nada saber. Outros animais, minutos após o nascimento mostram desenvoltura nos gestos. O recém-nascido humano mostra uma espécie de inadequação, uma falta quase absoluta de inteligência para lidar com os problemas de adaptação. Suas coordenações não estão prontas, ele é imaturo. Como lidar com os problemas que seu meio certamente lhe imporá? Porém, temos que lembrar que o meio que recebe as outras criaturas vivas deste planeta, é um meio natural, que raramente sofre mudanças. Portanto, a cada coordenação apresentada pela jovem criatura, corresponderá algo em seu meio natural. Mas não é esse meio natural que recebe o bebê humano. Seu meio nunca será natural, será sempre cultural, um meio inventado pelo próprio homem na falta de uma natureza que o acolha. O homem é frágil, não é dotado de forças e habilidades físicas capazes de dar conta das dificuldades impostas pela natureza a todos os seres. Ele não teria chances se tivesse que agir somente com seus meios naturais. Seu meio ambiente, repetimos, é um meio cultural, e esse meio cultural nunca é estável, nunca mantém-se em ordem constante, está permanentemente em mudança. Portanto, para dar conta de se adaptar a um meio em permanente transformação, somente uma inteligência criativa, plástica, capaz de transformar-se a todo momento poderia ser adequada. E é nesse ponto que se torna absolutamente importante o homem, ao contrário das outras criaturas, nascer dotado, não de ordens motoras, de uma motricidade acabada, mas de desordens motoras, de uma motricidade aberta. Todas as criaturas vivas estão no mundo para dar conta da tarefa de viver, de manifestar a vida. Para tanto, elas são dotadas de um conjunto de habilidades motoras que cumprem essa tarefa; uns são presas, outros predadores, uns são mais velozes, outros mais fortes, e assim por diante. Mas não são elas que decidem isso. Seu destino está traçado em suas cadeias genéticas. A criatura humana, de sua parte, também vem ao mundo para dar conta da tarefa de viver. Ela nasce com uma intencionalidade primordial voltada para a missão de viver. Mas ela não terá à sua disposição, para tanto, um conjunto pronto e acabado de coordenações motoras, uma inteligência pronta que responda a todas as solicitações do meio. Se tivesse esse acabamento desde o nascimento, não teria a menor chance no meio cultural em que terá que viver. Portanto, ter essa imaturidade, essa aparente fragilidade, essa desordem inicial é o que lhe dá chances de permanecer neste mundo. À medida que se depara com seu mundo, a criança, movida pela intenção primordial de viver, e por ter a motricidade em aberto, arregimenta recursos e constrói suas coordenações de acordo com as situações surgidas. Mas, também, por ter, à partida, reflexos temporários, que não duram mais que três ou quatro meses, chamados de reflexos arcaicos, ela tem alguns recursos que lhe servem como ponto de partida para orientar suas coordenações. Assim, o chamado reflexo de preensão, por exemplo, torna-se um ponto de partida para a organização das coordenações de manipulação. Da mesma forma, o reflexo da marcha orientará as primeiras coordenações de locomoção. E o reflexo de Moro ou dos braços em cruz orientará as primeiras coordenações de estabilização corporal. Resta o reflexo arcaico de sucção, localizado na boca. Para que serve? Serve para ser o centralizador de toda a atividade inteligente e de relações da criança com o mundo. Como se fosse um centro de atração de toda a inteligência humana. Sobre a importância da boca cabe um capítulo especial, uma teoria toda especial, inclusive na teoria da motricidade humana. E assim a inteligência humana vai se fazendo, ao sabor dos encontros, das desordens do lado do homem e das desordens do lado do meio cultural, que é sempre novo, sempre uma surpresa. Mas como a tarefa de viver neste mundo é, para o ser humano, titânica, entra em cena um recurso especial, que julgo ser, talvez, o atributo mais importante da espécie humana: a imaginação. A imaginação não diminui em nada a importância da motricidade humana, posto que a potencializa. Os limites de nossas forças e habilidades são um tanto estreitos, até que entre em cena a imaginação, que é essa capacidade humana de reter os acontecimentos, de criar um tempo entre o percebido e a ação em resposta do percebido. Uma espécie de hiato, como dizia Arnold Gehlen, entre o sinal e a resposta. Esse hiato, quando o cérebro humano é maduro o suficiente para imaginar, a partir de sete ou oito meses de idade, aproximadamente, forma em nosso interior, uma representação dos acontecimentos. Aquilo que vivemos pode ser representado na imaginação, isto é aquilo que vivemos com nossos movimentos e com nossos sentidos. Fazemos de cada coisa vivida uma representação motora, olfativa, auditiva, visual, etc. E essas representações potencializam nossas ações, são construtoras de cultura, são inventivas, criaram toda a cultura que observamos em nosso meio, com todos os artefatos que nos transformaram, inclusive, de presas em predadores. É essa parceria entre movimentos e imaginação, que constitui aquilo que chamamos de motricidade, essa fantástica capacidade de realizar as intenções humanas, a partir da intenção primordial de viver. A vida só quer viver em nós, mas essa não é tarefa fácil em nenhuma criatura, muito menos na criatura humana, aquela que é, aparentemente, a mais frágil de todas. Toda a descrição do desenvolvimento humano aponta para uma criatura que, acima de tudo, só consegue realizar a vida movendo-se. Alimentar-se, reproduzir-se e abrigar-se, tarefa básica de toda criatura, depende, em nós, do movimentar-se. O alimento, o sexo e o abrigo não veem a nós, nós temos que ir a eles. Nada se realiza neste mundo, nesta vida tal qual a conhecemos, que não seja pela motricidade. Nunca se constatou qualquer acontecimento que não seja corporificado, que não seja encarnado, e isso não é um apelo contra as religiões, mas uma constatação de como as coisas acontecem neste mundo em que todos vivemos. É pela motricidade, esse arranjo de gestos e imaginação, que o homem realiza a vida no planeta Terra. Uma educação que não negasse a natureza humana reconheceria como matérias protagonistas de todo o sistema educacional a educação dos gestos e da imaginação. Uma educação que pretendesse ser coerente com a natureza humana reconheceria que, para cumprir a vida neste mundo, somos corpo e nos movemos, portanto, não encerraria nossos jovens em pequenos espaços de meio metro quadrado por doze anos seguidos. O reconhecimento do corpo que somos tornaria protagonistas do sistema de ensino as matérias da vida, tais como a motricidade, a imaginação, o meio ambiente, a cultura e a sociedade. As disciplinas que hoje todos aprendemos em nossas escolas poderiam continuar a ser importantes, porém, passariam de protagonistas a coadjuvantes. E o motor de toda a educação certamente seria o lúdico, ou o jogo, o grande fertilizador da imaginação humana, aquilo que, em sua maneira silenciosa, e em estado de graça, diz-nos que é bom viver, que a vida vale a pena, que por ela valem o sacrifício e o trabalho, inclusive. Isto que aqui descrevi é uma pequena dose da imensa contribuição que o Prof. Manuel Sérgio legou aos brasileiros de boa vontade que tiveram o privilégio de conviver com ele.

 

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