CORRIDA DE TORAS – PRÁTICA DOS GUARETIS E CAICAÍZES – 1685-1687  

CORRIDA DE TORAS – PRÁTICA DOS GUARETIS E CAICAÍZES – 1685-1687

 

LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ

Instituo Histórico e Geográfico do Maranhão – Cadeira 40

Academia Ludovicense de Letras – Cadeira 21

Professor de Educação Física – Mestre em Ciência da Informação

 RESUMO

A “corrida de toras” é primeira atividade “esportiva” praticada no Maranhão. Os Canelas, ao codificarem as corridas realizadas em suas aldeias – regras dos bisavós -, estão repetindo o que fizeram outras culturas. Se for aceita a codificação das regras de corridas pelos Gregos em seu período clássico como precursora das regras atuais do Atletismo, também deve ser aceita a corrida entre os Canelas (Guaretis e CaíCaí) como a primeira manifestação desse esporte em terras maranhenses (brasileiras) [1].

Aqui, relata-se a descrição de uma corrida entre os indios Guaretins em visita aos Caicaízes, por João Velho do Valle, em sua Jornada feita nos anos de 1685 a 1687, em reconhecimento dos rios Itapecuru, Monin, Mearim e Paraguaçu (Parnaiba).

 

 

     João Renôr nos dá a conhecer uma nova edição da Jornada de João Velho do Valle neste final de 2015[2]:

RELAÇÃO DA JORNADA que vou fazendo com o gentil CaiCai a fazer pazes com o gentil de Paraguassú e os rios Itapewcurú donde habitam várias Nações e descobrimento para a parte do Brasil e também para fazer todo o possível para fazer descer algumas Nações para este rio Itapecurú por mandado do senhor Gomes Freire de Andrada, Governador e Capitão General deste Estado (João Vellho do Valle, 10/11/1685).

 corrida de toras 5

Logo na 2ª parte, quando trata da “relação dos rios, aldeias, nações indígenas e Murubixabas visitados por João Velho do valle durante sua jornada (1685-1687), item 15 (p. 44), em visita a Ynáya Merim (principal ou Morubixaba):

Os machos levando às costas um trôço de pau de cinco palmos de roda e seis de comprimento levando-o numa carreira tomando-o uns das costas dos outros sem descansarem até chegarmos à aldeia donde achamos o Principal Ynáyá Merim (JORNADA NO 7).

http://www.funai.gov.br/indios/jogos/novas_modalidades.htm#005imagesCAYXKI2G

 

Catharino (1995)[3] ao fazer uma análise do “Trabalho índio em terras de Vera ou Santa Cruz e do Brasil” refere-se, dentre esses trabalhos a dois que nos interessam particularmente: “O trabalho desportivo” e “O trabalho locomotor”. Ao analisar o trabalho desportivo considera que nesse mundo, antes da chegada dos brancos, a sobrevivência exigia qualidades atléticas, exercícios constantes, com descanso e repouso intercalados, de duração sumamente variáveis. Por isso, os índios se tornavam atletas naturais, para sobreviver, pois tinham que, em terra, andar, correr, pular, trepar, arremessar, carregar, e, na água, nadar, mergulhar e remar. Realizar trabalho-meio, autolocomotor, com suas próprias forças, apenas e/ou, também, com auxílio de instrumentos primitivos, para obtenção de produtos necessários:

Entre prática guerreira e desportiva há um nexo de causalidade circulativo, proporcionalmente inverso. Mais prática desportiva, menos guerra. Mais guerra, menos aquela. Causas produzindo efeito repercutindo sobre a causa. Nexo fechado, de recíproca causalidade e efeito. O trabalho-meio, autolocomotor, servia de aprendizado e adestramento – atlético que era – ao competitivo”.

Entre a infância e a puberdade, e a adolescência e a virilidade ou maioridade, entre os 8 e 15 anos, a que chamamos mocidade, os kunnumay, nem miry nem uaçu, tomavam parte no trabalho dos seus pais imitando o que vêem fazer. Não se lhes manda fazer isto, porém eles o fazem por instinto próprio, como dever de sua idade, e já feito também por seus antepassados:

“Trabalho e exercício, esses mais agradáveis do que penosos, proporcionais à sua idade, os quais os isentavam de muitos vícios, ao qual a natureza corrompida costuma a prestar atenção, e a ter predileção por eles. Eis a razão porque se facilita à mocidade diversos exercícios liberais e mecânicos, para distraí-la da má inclinação de cada um, reforçada pelo ócio, mormente naquela idade”.

 

Após essas explicações, o Autor informa que essa seção – o trabalho desportivo – é dedicada ao trabalho competitivo entre índios, embora caçando e pescando, competissem amiúde com outros animais, considerados irracionais, o que faziam desde a infância. Sem falar nos jogos educativos:

“… jogos e brinquedos (Métraux) dedicou um só parágrafo, quase todos graças a d’Evreux, acerca dos feitos pelos Tupinambás. “Tratava-se de ‘arcos e flexas proporcionais às suas forças’. O jogo, educativo para a caça, pesca e guerra, era possível porque reunidos plantavam, e juntavam cabaças, que serviam de alvo, ‘adextrando assim bem cedo seus braços’. Assim, brincavam os meninos de 7 a 8 anos. Kunumys-mirys. As meninas, na mesma faixa etária, Kugnantins-myris, além de ajudarem suas mães, faziam ‘uma espécie de redesinhas como costuma por brinquedo, e amassando o barro com que imitam as mais hábeis no fabrico de potes e panelas’.  

 

Ao descrever as atividades da educação física no Brasil colonial, MARINHO (s.d.)[4] afirma serem a “pesca, a natação, a canoagem e a corrida a pé processos indispensáveis para assegurar a sobrevivência de nossos índios”.

O “esporte nacional dos Tapuya”, que praticavam uma corrida a pé carregando peso, é registrado por dois historiadores franceses – Claude d´Abeville – “História da Missão dos padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas”, de 1614[5]; e Ives d´Evreux – “Viagem ao Norte do Brasil feitas nos anos de 1613 a 1614”[6], publicada em 1864.

No Brasil holandês, se distinguiam a população indígena entre os ‘brasilianos’ ou ‘brasilienses’ e os ‘tapuias’. As relações entre os holandeses e os tapuias são tratadas abundantemente nas fontes neerlandesas, como é o caso das narrativas de Gerrit Gerbranstsz Hulck, publicada em 1635: “Breve descrição dos tapuias no Brasil”; e a narrativa de viagem de Rouloux Baro em seu contato com Janduí, o chefe tapuia do Rio Grande do Norte, aliado dos holandeses:

“[…] Ao nascer do sol, o ancião ordenou às mulheres que fizessem farinha e aos homens que fossem à caça de ratos e voltassem logo após o meio-dia, a fim de correr a árvore. Obedeceram e entrementes dois tapuias trouxeram sobre suas espáduas dois troncos de árvores, de mais de vinte pés de comprimento. Tiraram-lhes a casca na chama do fogo e poliram a madeira toda em volta, sem deixar nenhum nó. E quando todo o povo regressou cada qual pintou o corpo em diversas cores. Isto feito, aqueles que tinham apanhado ratos soltaram-nos na planície, depois parte deles carregou prontamente aqueles troncos, correndo com uma velocidade inigualável atrás dos ratos. Quando um deles parecia cansado, outro o substituía sem retardar a corrida, que durou mais de uma hora. Depois de terminada, cada um que voltava contava como e de que modo perseguira, ferira e matara os ratos. O ancião Janduí correra com eles e Ra coisa maravilhosa ver um homem de mais de cem anos (segundo a opinião dos seus, de mais de 160) correr com tanta destreza.” (in “Relação da viagem de Rouloux Baro”, anexa a Pierre Moreau, História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses, Belo Horizonte, 1979, p.99, citado por MELLO, 2010, p. 269; grifos nosso)[7].

 

A “Corrida das Toras” é absorvida pela Igreja Católica, e incorporada aos ritos religiosos dos padres jesuítas que chegaram ao final do século XVI. A exemplo da tradicional festa da Puxada do Mastro, em Olivança, e os mastros levantados em inúmeras festas religiosas, de hoje em dia.[8]

Acreditam Dieckert & Mehringer (1989a, 1989b, 1994)[9] ser “através da criação e da valorização cultural da corrida de toras… a base para a sua [dos Canelas] sobrevivência física e cultural” .

Como curiosidades longínquas, é ainda interessante observar os registros sobre corridas em que se levam sobre os ombros pedras, no Assam (Índia), e mesmo outros homens, no Havaí (Damm, 1970 [1960][10], citado por VIANNA, 2001)[11].

A corrida de toras

Na etnologia sul-americana, as corridas de toras são geralmente apontadas como traço característico dos Jê ou, no máximo – levando-se em conta testemunhos acerca de povos extintos ou que as teriam realizado no passado -, estendidas ao tronco lingüístico Macro-Jê (Melatti, 1976). Nos tempos correntes, praticam-nas os jês centrais Xavante e Xerente, os Panará e os grupos timbiras.(VIANNA, 2001)[12]. Vianna (citando MARTÍNEZ-CROVETTO, 1968b)[13], informa sobre práticas similares entre sub-grupos guaranis na Argentina e Paraguai.

 
   

Autor(a) Roberto Castro http://br.olhares.com/corrida_de_tora_foto261655.html

 

Obedecendo a seus ritos tradicionais de significados social, religioso e esportivo, ela está associada a algum rito e, conforme esses ritos variam os grupos de corredores, assim como o percurso e o tamanho das toras. Essas atividades são realizadas sempre com duas toras praticamente iguais. Os participantes se dividem em dois grupos de corredores “rivais”, cabendo apenas a um atleta de cada grupo carregar a tora, revezando-se em um mesmo percurso. As corridas se realizam no sentido de fora para dentro da aldeia, nunca de dentro para fora, ou mesmo dentro dela, quando estabelecem os pontos de largada e chegada no pátio de uma casa chamada woto, uma espécie de oca preparada para todas as atividades culturais, sociais e política. É sempre realizada ao amanhecer e ao entardecer. As corridas vindas de fora acontecem geralmente no final das tardes, quando os Krahô retornam de alguma atividade coletiva (caça ou roça). A corrida de tora é praticada nos rituais, festas e brincadeiras. Nesses casos, as toras podem representar símbolos mágicos-religiosos, como durante o ritual do Porkahok, que simboliza o fim do luto pela morte de algum membro da comunidade. Pela manhã, a corrida ganha um sentido de ginásticas para a preparação do corpo. Corre-se apenas com as toras já usadas ao redor das casas, no sentido contrário do relógio. (FUNAI)[14].

NIMUENDAJÚ, Curt. A corrida de toras dos timbira. Mana v.7 n.2  Rio de Janeiro oct. 2001[15]

Observa-se que em diferentes culturas e diferentes épocas houve alguma forma de manifestação do movimento representado pela corrida (DICKERT & MEHRINGER, 1989a, 1989b, 1994; JUNG & BRUNS, 1984)[16] e esta sempre teve, primeiro, um caráter de sobrevivência. Ritualizada, passa a fazer parte da cultura onde representam os valores e as normas sociais, o mesmo ocorrendo quando levadas para a esfera do lazer (lúdico).

Os indios maranhenses, ao codificarem as corridas realizadas em suas aldeias – regras dos bisavós -, estão repetindo o que fizeram outras culturas. Se é aceita a codificação das regras de corridas pelos Gregos em seu período clássico como precursora das regras atuais do Atletismo (BRASIL, 1989[17]; VAZ, 1991, 1996, 2001[18]), também se deve aceitar a corrida entre os Canelas como a primeira manifestação desse esporte em terras maranhenses, pois quando as diversas nações européias modernas aqui chegaram por volta dos anos 1.500 já encontram diversas outras nações, sendo a mais antiga delas os Canelas.

Retornemos ao texto de Renôr:

  1. Pela sexta (feira) tarde me despedi deles [Guachinarés] e me fui recolher ao nosso arraial. (i.e.: acampamento). Consta o arraial dos novos Guaretis de cinquenta indios bons, todos mocetões (jovens); dobrados serão9 duzentas almas entre todos (os) meninos e mulheres. No dia seguinte, doze do dito mês de dezembro (ano de 1695) pela manhã tornei ao dito arraial e reparti a metade dos velórios que trazia com o ‘molherio’ (mulheril) e os Principais […](p. 61)
  2. Despedi-me deles e fui-me para o arraial (acampamento). Neste dia, pela vésdpera, vieram os Principais a pagar-me a visita. E estiveram comigo até a noite contando-me várias cousas de suas antiguidades e guerras. A treze do dito mês (desembro de m1685) foram todos à caça, assim os Caícaízes como Guaretis que trouzeram muito de anta, porcos-queixadas e caça miúda em quantidade. Neste dia aumenta (a) barafia (confusão) de comer e seus bailes. Aos quatorze do dito (mês) partrimos para a aldeia dos Caícaízes que dali nos fica tres quartos de léguas, todos incorporados; os machos levando às costas um trôço de pau de cinco palmos de roda e seis de comprimento levando-o numa carreira tomando-o uns das costas dos outros sem descansarem até chegarmos à aldeia donde achamos o Principal Ynáyá Merim. (p. 61-62)

[1] VAZ, Leopoldo Gil Dulcio. A CORRIDA ENTRE OS ÍNDIOS CANELAS. Painel apresentado na III Jornada de Iniciação Científica da Educação Física da UFMA, 1995; Artigo publicado na COLETÂNEA INDESP – DESPORTO COM IDENTIDADE CULTURAL, Brasília: Ministério Extraordinário dos Esportes/Instituto Nacional de Desenvolvimento dos Desportos, 1996, p. 106-111. Revisto e ampliado.

[2] CARVALHO, João Renôr Ferreira de. JORNADA DE JOÃO VELHO DO VALLE EM RECONHECIMENTO DOS RIOS ITAPECURU, MONIN, MEARIM E PARAGUAÇU (1685-1687) FAZENDO ACORDOS DE PAZ COM AS NAÇÕES: CAICAÍ, GUARETI, GUANARÉ E CHARUNA. Teresina: EDUFPI, 2015.

[3] CATHARINO, José Martins. Trabalho Índio Em Terras Da Vera Ou Santa Cruz E Do Brasil – tentativa de resgate ergonlógico. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995

[4] MARINHO, Inezil Penna. História da educação física no Brasil. São Paulo: Cia. Brasil Ed.(s.d.).

[5] ABBEVILLE, Claude d´. História da Missão dos padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975.

[6] EVREUX, Ives d´. Viagem ao Norte do Brasil feitas nos anos de 1613 a 1614. São Paulo: Siciliano, 2002.

[7] MELLO, Evaldo Cabral de (org.). O Brasil holandês (1630-1654). São Paulo: Penguin Classics, 2010.

[8] PUXADA DO MASTRO AGITA OLIVENÇA. In CIA DA NOTÍCIA, disponível em http://www.ciadanoticia.com.br/v1/tag/derrubada-de-toras/, 08/01/2011, acessado em 23/01/2011

[9] DIECKERT, Jurgen & MEHRINGER, Jakob. A corrida de toras no sistema cultural dos índios brasileiros Canelas (relatório de pesquisa provisório). Zeitgschift Muncher Beltrdzur Vulkerkunde, julho, 1989.

DIECKERT, Jurgen & MEHRINGER, Jakob. Cultura do lúdico e do movimento dos índios Canelas. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 11, n. 1, p. 55-57, set. 1989.

DIECKERT, Jurgen & MEHRINGER, Jakob. . A corrida de toras no sistema cultural dos índios brasileiros Canelas. Revista Brasileira de Ciências do Esporte – v.15 – n.2 – 1994.

[10] DAMM, Hans. 1970 [1960] – “The so-called sport activities of primitive peoples“. Em: (editado por Günther Lüschen) The cross-cultural analysis of sport and games, Champaign (Illinois, EUA): Stipes Publishing Company, pp.: 52-65.

[11] VIANNA, Fernando Fedola de Luiz Brito. A bola, os “brancos” e as toras: futebol para índios xavantes. Universidade de São Paulo Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas, Departamento de antropologia. Dissertação de mestrado em antropologia social, sob orientação da Profa. Dra. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, dezembro/ 2001. Disponível em

http://www.ludopedio.com.br/rc/upload/files/260016_Vianna%20(M)%20-%20A%20bola,%20os%20brancos%20e%20as%20toras_futebol%20para%20indios%20xavantes.pdfM, São Luís, n. 36, março de 2011(pré-print).

[12] VIANNA, 2001, obra citada.

[13] MARTÍNEZ-CROVETTO, Raul. 1968b – “Juegos y deportes de los indios guaranies de Misiones“. Em: Etnobiologica, 6, marzo, pp.: 1-29.

[14] FUNAI. JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS. Disponível em http://www.funai.gov.br/indios/jogos/novas_modalidades.htm#005

[15] NIMUENDAJÚ, Curt. A corrida de toras dos timbira. Mana v.7 n.2  Rio de Janeiro oct. 2001

[16] DIECKERT, MEHRINGER, 1989, obra citada.

DIECKERT, MEHRINGER, 1989b. obra citada.

DIECKERT, MEHRINGER, 1994, obra citada.

[17] BRASIL, CBAt. Atletismo – Regras Oficiais. Rio de Janeiro: Palestra, 1989.

[18] VAZ, Leopoldo Gil Dulcio. A história do atletismo maranhense. “O Imparcial, 27 de maio de 1991, p. 9.

VAZ, Leopoldo Gil Dulcio. A corrida entre os índios canelas – contribuições à história da educação física maranhense. In SOUSA E SILVA, José Eduardo Fernandes de (org.). Esporte Com Identidade Cultural: Coletâneas. Brasília: INDESP, 1996, p. 106-111;

VAZ, Leopoldo Gil Dulcio. A corrida entre os índios canelas – contribuições à história da educação física maranhense. In Revista “Nova Atenas” de Educação Tecnológica, São Luís, v.4, n. 2, jul/dez 2001, disponível em www.cefet-ma.br/revista.

 

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