Do Blog do Leopoldo Vaz • terça-feira, 24 de maio de 2016 às 09:23  http://www.blogsoestado.com/leopoldovaz/2016/05/24/historiadora-mary-del-priore-lancara-livro-em-sao-luis/ 0comentário
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO MARANHÃO-IHGM  
No próximo sábado (28), às 19h, na Livraria Leitura do Shopping São Luís a renomada historiadora Mary Del Priore, lançará aqui em São Luís seu mais recente trabalho, publicado pela Editora Leya, o 1.º volume de uma tetralogia denominada ” Histórias da Gente Brasileira: colônia”. (432 pgs. R$ 54,90).

A convite da Editora e da própria autora, sócia efetiva do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM) estará participando como instituição convidada. Este evento é uma parceria entre Ed. Leya, IHGM e Livraria Leitura. Veja abaixo entrevista concedida pela autora ao Jornal O Globo.

Historiadora Mary Del Priore mapeia a vida cotidiana no Brasil-colônia por Luciano Trigo “Menos preocupada com os grandes fatos, feitos e nomes, vitórias e fracassos que marcaram a nossa nação que com aspectos esquecidos da vida cotidiana, ela investiga os códigos da vida de personagens anônimos e esquecidos. Busca, assim, registrar as verdadeiras histórias de pessoas comuns, mostrando como elas se vestiam, onde moravam, o que comiam, o que faziam para se divertir, como se relacionavam.  Nesta entrevista, Mary fala sobre a sua pesquisa, que lança luzes sobre a formação da nossa identidade como brasileiros.” – De que maneiras o caráter e a identidade nacionais começaram a ser moldados já no Brasil-colônia? Que traços sociais e culturais presentes na sociedade daquela época persistiram como tipicamente brasileiros? Em outras palavras: nós já éramos brasileiros na época da colônia? MARY DEL PRIORE: Se entendermos “ser brasileiro” um indivíduo capaz de múltiplas sinergias culturais, resiliência às dificuldades e criatividade para buscar soluções de inserção num meio desconhecido, sim. Pois isso foi o Brasil dos primórdios. O período de colonização foi marcado pela luta entre problemas e soluções, e o livro trata disso: de como nossos antepassados as encontraram, no seu cotidiano. E não de conceitos ou teorias sobre identidade, palavra, aliás, que não existia na época. Existia, sim, um sentimento de pertença: a um Rei, a uma fé, a um lugar de origem que podia ser um vilarejo português, uma nação africana, um porto na Europa do norte. A Terra de Santa Cruz foi o lugar do encontro de gente vinda de muitas direções além de Portugal: franceses, holandeses, espanhóis, iorubás, fulas, mandingas ou tapas, marujos “chins” a bordo dos navios que faziam comércio com as Índias, “peruleiros” brancos, mulatos e negros, vindos da Bacia do Prata, e, os habitantes originais, ou seja, tupis e guaranis. Uma globalização precoce? Certamente. E uma efervescência de línguas, de saberes, de experiências que permitiram a instalação de gente a mais diversa, e a consequente exploração da terra. O livro trata, também, do que movia essas pessoas: medos, ambições, paixões. – Sua pesquisa se detém na vida cotidiana, registrando aspectos da alimentação, do mobiliário, da habitação. Cite os casos mais curiosos revelados pela sua pesquisa em relação a esses diferentes temas. MARY: O livro destaca as trocas culturais que permitiram essa gente se adaptar. Alguns exemplos: na culinária, o azeite de oliva importado do Reino a custo altíssimo foi substituído por azeite de açaí, de coco, de dendê, “tempero essencial da maior parte das viandas dos pretos e ainda dos brancos criados com eles”, segundo o cronista Luiz dos Santos Vilhena, no século XVIII. Na Amazônia, empregava-se o azeite de peixe-boi, em Minas a gordura do bicho de taquara e, em toda parte, banha de porco. Além da tradicional, a manteiga era extraída dos ovos de jabuti, de peixes como o camurupim e o jaú ou de tartarugas. Os óleos vinham da prensagem do amendoim, da castanha de caju, das amêndoas da macaúba, da castanha da pindoba. E em regiões de criação de porcos, usava-se o toucinho, que, em meados do século XIX, passou a ser importado dos Estados Unidos. No caso do mobiliário, a rede indígena, transportável e fresca, além de adaptada ao clima tropical, retardou a difusão do leito ou do catre. Os raros exemplares desses móveis pertenciam, no século XVII, a autoridades, funcionários da Corte ou colonos abastados. Em Minas Gerais, a influência do Norte de Portugal se fez sentir na segunda metade daquele século. Surgiram leitos com balaustradas e colunas sustentando dosséis, mas sem torneados, pois não havia… torno! Já, na construção das casas, o e estilo tendia a repetir técnicas ancestrais. Da Goa portuguesa, herdamos um “saber fazer” repetido nos arredores do Rio de Janeiro: as casas eram cobertas de palha, tinham portas estreitas, e as esteiras serviam para dormir ou sentar para comer. A bosta de vaca misturada ao barro das paredes ajudava a combater insetos. Um único cômodo servia como cozinha, quarto e sala, embora o fogão de lenha se situasse, na maior parte das vezes, do lado externo da moradia, sob o que, em São Paulo, se chamava uma “tacaniça”: um puxado, lição dos indígenas. Já, o óleo de baleia para ligar a argamassa das construções foi contribuição dos africanos, assim como o manuseio do adobe, tão presente em Minas Novas ou Paracatu, em Minas Gerais. Bancos de coral ou conchas permitiam a fabricação da cal, matéria “alva e boa para guarnecer e caiar”, como se dizia na época, herança mourisca no sul de Portugal. – As relações de trabalho eram atravessadas pela exploração, começando pela escravidão. Mas que traços peculiares a escravidão assumiu no Brasil, no sentido da convivência e da interação entre senhores e escravos apontadas, por exemplo, por Gilberto Freyre? MARY:Não tivemos uma escravidão, mas “escravidões” que variaram no tempo e no espaço colonial. Também é bom lembrar, que a origem dos cativos vindos do África variou entre os séculos XVI e XVIII. Houve maior incidência de nações do Golfo da Guiné até o século 18, e daí para frente, uma hegemonia do tráfico com Angola e Moçambique. Nas pequenas propriedades agrícolas, como vemos em Minas, ou no litoral entre roceiros-pescadores, os cativos tinham suas próprias casas e roças e grande intimidade com seus senhores. Durante o período da mineração, em que o tráfico multiplicou a imigração de escravos, a rigidez no trabalho aumentou, mas, muitos cativos conseguiram comprar sua liberdade graças ao garimpo nos Dias Santos ou domingos, ampliando o número de libertos e forros nas cidades do Ouro. Nos grandes engenhos de açúcar, na época da colheita e do plantio, o trabalho era de sol a sol. Mas os conhecimentos que tais escravos consolidavam como carpinteiros, pedreiros, cirurgiões barbeiros, permitiram a muitos se alforriar e seguir vendendo seus serviços aos antigos senhores. Um “mestre de açúcar”, por exemplo, encarregado de manipular a caldeira e extrair o açúcar mais fino possível, ganhava gratificações. Nos centros urbanos, os “escravos de ganho” se movimentavam sem limites, dormiam fora e pagavam aos proprietários o devido ganho. O que auferissem a mais, usufruíam ou economizavam para comprar a própria liberdade e a de familiares. As mulheres, sobretudo, passavam de escravas a senhoras, e seus testamentos revelam níveis de riqueza nunca imaginados. No Nordeste e Sul, áreas de criação de gado, os escravos eram em menor número. E, muitas vezes aquinhoados com gado que multiplicavam, compravam sua liberdade se tornando vaqueiros livres. Nas diversas escravidões, nada era estático e múltiplos acordos davam maleabilidade a vida de milhares de pessoas. – Sobre a intimidade e a vida conjugal, afetiva e sexual no Brasil-Colônia, que elementos chamaram a sua atenção? Cite exemplos. MARY:No casamento todo o cuidado era pouco. Normas católicas regiam as práticas dos casados. Até para ter relações sexuais, as pessoas não se despiam. As mulheres levantavam as saias ou as camisas e os homens, abaixavam as calças e ceroulas. Mesmo nos processos de sedução e defloramento que guardam nossos arquivos vê-se que os amantes não tiravam a roupa durante o ato. Um exemplo, em Paraty, Rio de Janeiro, no início do século XIX: “e que ele testemunha presenciara e vira a ofendida e o Réu estarem no mato juntos e unidos um por cima do outro a fazerem movimento com o corpo, e que ele testemunha vendo este ato, voltou sem dar a perceber a ninguém”. Nem uma palavra sobre despir-se. As práticas amorosas, contudo, eram rigidamente controladas. Toda a atividade sexual extraconjugal e com outro fim que não a procriação era condenada. Manobras contraceptivas ou abortivas não eram admitidas. O casal deveria se portar com pudor, amizade, discernimento, moderação e sem nenhum impulso de volúpia. A manifestação de ardor sexual era considerada, como queria são Jerônimo, uma forma de adultério, porque conspurcava a conjugalidade. A noção de debitum ou débito conjugal, uma dívida ou dever que os esposos tinham que pagar quando sexualmente requisitados, torna-se lei. Associava-se o prazer exclusivamente à ejaculação, e por isto era “permitido” aos maridos prolongarem o coito com carícias, recorrendo até a masturbação da parceira, a fim de que ela, “emitisse a semente”, justificando a finalidade do ato sexual. Ao ser definido como uma conduta racional e regulada em oposição ao comércio dito apaixonado dos amantes, o comércio conjugal só era permitido em tempos e locais oportunos. Consideravam-se impróprios os dias de jejum e festas religiosas, o tempo da menstruação, a quarentena após o parto, os períodos de gravidez e amamentação. Sobre o papel da mulher durante o coito, fazia-se eco aos conselhos de Aristóteles: que nenhuma mulher, mas, nenhuma mesmo, desejasse o lugar de amante de seu marido. Isso queria dizer que a esposa não devia demonstrar nenhum conhecimento sobre sexo. Somente casta e pura, ela seria desejada. Sua ingenuidade seria prova de sua honradez. As regras da Igreja católica pareciam se esconder sob a cama dos casados, controlando tudo. Proibiam-se ao casal as práticas consideradas “contra a natureza”. Além das relações “fora do vaso natural”, consideravam-se pecados graves “quaisquer tocamentos torpes” que levassem à ejaculação. Assim, se perseguiam os “preparativos” ou preliminares ao ato sexual. A prática, bastante difundida, aparece em tratados de confissão encarregados de simular o diálogo entre o pecador e o padre: “Pequei em fazendo com algumas pessoas na cama, pondo-lhes as mãos por lugares desonestos e ela a mim, cuidando e falando em más coisas”, diria o primeiro. “Já pagar seus pecados com penitências!”, diria o segundo. O sexo admitido era restrito exclusivamente à procriação. Donde a determinação de posições “certas” durante as relações sexuais. Era proibido evitar filhos, gozando fora do “vaso”. Era obrigatório usar o “vaso natural” e não o traseiro. Era proibido à mulher colocar-se por cima do homem, contrariando as leis da natureza. Afinal, só os homens comandavam. Ou colocar-se de costas, comparando-se às feras e animalizando um ato que deveria ser sagrado. Certas posições, vistas como “sujas e feias”, constituíam pecado venial, fazendo com que “os que usam de tal mereçam grande repreensão, por serem piores do que brutos animais, que no tal ato guardam seu modo natural”, dizia a Igreja. Outras posturas conhecidas como “à la brida”, “como carneiro pastando” ou a dos “malabaristas” eram ilícitas. Controlado o prazer, o sexo no casamento virava débito conjugal e obrigação recíproca entre os cônjuges. Negá-lo era pecado, a não ser que a solicitação fosse feita nos já mencionados dias proibidos, ou se a mulher estivesse muito doente. Dor de cabeça não valia. O que se procura é cercear a sexualidade, reduzindo no mínimo as situações de prazer. – Seu livro pode ser associado à chamada Micro-História, por dar pouca importância aos grandes personagens e acontecimentos? MARY: Meu livro nada tem a ver com a Micro-História, que virou uma etiqueta para abordagens muito diferentes. Até seus pais fundadores acabaram por divergir nas suas pesquisas. Levi e Poni preocuparam-se com as relações entre indivíduos e coletividade e Carlo Ginzburg voltou-se para os estudos do que chamou de “paradigmas indiciários”, baseados na antropologia criminal e na história da arte. Nada fiz nesse sentido, pois, nada quero explicar. Quero, sim, descrever, ou melhor ver! Desejo levar o leitor a compreender o “como” aconteceu. Não o “por que” aconteceu. Quero contar como viviam, se alimentavam, trabalhavam, criavam, inventavam, burlavam, amavam e traíam nossos antepassados. E como se trata de uma tetralogia – Colônia, Império, República Velha e Nova – mostrar como regularidades e fenômenos repetitivos variaram ou evoluíram através dos tempos. – Já há várias décadas, a visão da História como feita por grandes indivíduos vem sendo desqualificada no meio acadêmico. Mas, sem desconsiderar o papel das forças abstratas, das longas durações, dos condicionantes econômicos e culturais você não acha que exageraram nessa desqualificação? A História que estamos testemunhando hoje, no Brasil, parece fortemente determinada pela ação de indivíduos específicos: fossem outros os atores, nada disso estaria acontecendo. Você concorda? MARY:Hoje ou ontem, no cenário histórico, sempre haverá indivíduos de destaque – e a volta das biografias, por tanto tempo abandonadas pelos historiadores e feitas por bons jornalistas –  recupera  tais personagens. Mas preferi me deter em indivíduos anônimos ou pouco conhecidos – e dou vários exemplos no livro – que mudaram suas vidas e histórias. Um exemplo impressionante foi o do escravo Manuel Dias de Oliveira. Originário de Santana do Macacu, Rio de Janeiro, em 1763, fixou-se muito jovem na capital, onde praticava como ourives. Impressionado com tanto talento, seu senhor o enviou para estudar no Porto. Morrendo seu benfeitor, ele se transferiu para Lisboa e se matriculou na Real Casa Pia que funcionava no Castelo de São Jorge. Seu sucesso foi tão grande que ele foi escolhido para, juntamente com o já célebre Domingos Antônio de Sequeira, ir cursar a Academia de São Lucas de Roma. Lá, se tornou assistente de Pompeo Battoni, retratista da nobreza e precursor do neoclassicismo na pintura. Quando Napoleão invadiu os estados pontifícios, Manuel refugiou-se em Gênova, de onde retornou a Portugal depois de uma ausência de dez anos. Em 1800, foi nomeado professor régio de uma aula de Desenho e Figura, criada no Rio de Janeiro, época em que retornou ao Brasil. Em Portugal, Manuel era conhecido como “o Brasiliense”. Aqui, se tornou “o Romano”.

 

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