O QUE É A CAPOEIRA?[1]

 

Aqui, no Maranhão, há uma discussão por parte dos Capoeiras – Angolas e Regionais – se a Capoeira é cultura ou esporte. Os Angolas a querem como cultura – fazem parte da cultura corporal do povo maranhense, e suas apresentações – rodas – devem fazer parte do calendário da Secretaria de Cultura e inseridas nos diversos eventos culturais, inclusive com acesso às verbas e subsídios para esse fim; os Regionais querem-na como Luta, e disputada em Torneios e Campeonatos de Capoeira – roda -, além de – já incluída – nos Jogos Escolares Maranhenses; também reivindicam acesso às verbas da Cultura, além das do Esporte…

Se – e não estou defendendo o Sistema Confef/Cref – for “praticadas com características desportivas e/ou  com o cunho de exercícios, na busca de condicionamento físico então é atividade de Educação Física…” E os seus profissionais devem estar sujeitos às formas da Lei.[2].

E isso vai depender de qual definição para “Capoeira” se adota. Dependendo dela é que se vai caracterizar a CAPOEIRA… 

  1. Desporto de Criação Nacional, surgido no Brasil e como tal integrante do patrimônio cultural do povo brasileiro, legado histórico de sua formação e colonização, fruto do encontro das culturas indígena, portuguesa e africana, devendo ser protegida e incentivada”. Federação Internacional de Capoeira – FICA[3]
  2. b) “um jogo de destreza corporal, com uso de pernas, braços e cabeça, praticado em duplas, baseado em ataques, esquivas e insinuações, ao som de cânticos e instrumentos musicais (berimbau, atabaque, agogô e reco-reco). Enfocado em sua origem como dança-luta acabou gerando desdobramentos e possibilidades de emprego como: ginásticas, dança, esporte, arte marcial, folclore, recreação e teatro, caracterizando-se, de modo geral, como uma atividade lúdica”. (VIEIRA, 2005).[4]

 

A “regulamentação” da Capoeira como atividade física – portanto passível de profissionalização – dá-se nas primeiras décadas do século passado.  Segundo Reis (2005), e Vidor e Reis (2013) [5] foram nos anos 30 e 40, em Salvador, que se abriram as primeiras “academias” com licença oficial para o ensino da capoeira como uma prática esportiva. Destacando-se dois mestres baianos negros e originários das camadas pobres da cidade, Bimba e Pastinha.

Mestre Bimba, criador da capoeira Regional Baiana, não verá nenhum inconveniente em “mestiçar” essa luta, incorporando à mesma movimentos de lutas ocidentais e orientais (tais como Box, catch, savate, jiu-jítsu e luta greco-romana).

Por outro lado Pastinha, contemporâneo de Bimba e igualmente empenhado na legitimação dessa prática, reagindo àquela “mestiçagem” da capoeira, afirmando a “pureza africana” da luta, difundindo o estilo da capoeira Angola e procurando distingui-lo da Regional.

Para Reis (2005), e Vidor e Reis (2013) Bimba e Pastinha elaboraram, através da capoeira, estratégias simbólicas e políticas diferenciadas que visavam em última instância, ampliar o espaço político dos negros na sociedade brasileira e propõem dois caminhos possíveis para a inserção social dos negros naquele momento histórico[6]:

“A capoeira “mestiça” representada pela capoeira Regional. Embora incorpore elementos de lutas ocidentais, a capoeira Regional guarda elementos que reafirmam a identidade étnica negra nas músicas, nos toques do berimbau e nos próprios movimentos que, conforme depoimento de mestre Bimba são provenientes também do batuque e do maculelê (Rego, 1968:33). Assim, a capoeira Regional, ao colocar em contato sistemas de valores distintos e, portanto, construções corporais distintas (os movimentos corporais brancos e os negros), opera uma mediação, criando um campo simbólico ambíguo e ambivalente: (a) A capoeira Regional seria uma afirmação de identidade que é mais ampla que a da capoeira Angola pois afirma não a existência do negro excluído da sociedade branca mas sua presença enquanto parte da sociedade brasileira e, finalmente, enquanto símbolo da nação como um todo. (b) tem no ecletismo de que faz prova (por exemplo, a incorporação de elementos de outras formas de luta e a nova racionalidade na maximização dos efeitos dos golpes) um elemento de dinamismo que permite a construção de uma nova presença negra no cenário nacional. (c) tem um preço a pagar por tudo isso, no plano político, que significa renunciar à afirmação de uma diferença na “identidade negra”.

“A capoeira Angola, em contrapartida: (a) a capoeira “pura”, como forma inequívoca de afirmação da identidade étnica. A capoeira Angola, em sua própria designação, reafirma peremptoriamente sua origem étnica e, ao “conservar” a construção corporal negra, demarca uma forma culturalmente distinta de jogar capoeira. (b) existindo como resistência no momento de inclusão do negro na sociedade brasileira, só é revalorizada como reafirmação dessa mesma resistência em função da recuperação de uma “identidade negra” específica no cenário nacional, no bojo da construção política (contemporânea) de uma “consciência negra”. (c) essa construção só se torna possível a partir de uma postura “conservadora”, que reinventa a tradição e só se mantém com a recuperação simultânea dos outros elementos que, no plano simbólico, organizam essa “visão de mundo negra” (como por exemplo, a afirmação da origem africana da capoeira a partir do ritual de iniciação denominado dança da zebra ou “N’Golo”). (REIS, 2005).

 

Taffarel (2004) [7] levanta como possibilidade histórica a responsabilidade social dos capoeiristas – enquanto produtores associados, intelectuais orgânicos –-, na construção de uma nova cultura – a cultura socialista -, o que exige rigorosa consideração da teoria do conhecimento e teoria pedagógica que subsidia, constrói e consolida a práxis capoeirana, responsável também pela sociabilização da classe trabalhadora.

A Autora traz como dados empíricos da inserção da capoeira em tais complexos econômicos – empresariamento, mercadorização, esportivização, espetacularização, privatização da capoeira – as discussão sobre produção do conhecimento, formação de mestres e professores, políticas públicas e sobre ética e violência, exemplificando a ação do sistema CREF/CONFEF interferindo na cultura e na economia popular contribuindo para a destruição das forças produtivas. Afirma a ilustre Professora-Doutora em Educação Física, manifestando sua contrariedade pela perda que a mercantilização da capoeira representa para os valores culturais da própria Humanidade, justificando sua fala:

“Para contribuir com a reflexão da temática proposta neste ano “Capoeira a Serviço do Social ou do Capital?”apresentei o tema CAPOEIRA E PROJETO HISTÓRICO expondo dados da realidade sobre a destruição das forças produtivas, enquanto tendência do modo do capital organizar a vida e suas expressões na capoeiragem. Levantei a tese de que a capoeira está em franca degeneração e decomposição de seus valores genuínos – capoeira patrimônio da humanidade – quando subsumida ao modo do capital de produzir mercadorias para usá-las e trocá-las em relações capitalísticas. Procurei demonstrar que as abordagens da questão da capoeira centradas na ética, na ciência, na educação, na compreensão de cultura popular e, na normatização/monitorização reguladas pelo Mercado, pelo Estado e Comunitária são limitadas quando desprovidas da referencia de um projeto histórico explicito, superador do modo do capital organizar a produção – uso e troca de mercadorias.”.

 

Essa Autora levanta algumas teses, com base na economia política, para poder compreender as relações estabelecidas no âmbito da cultura e o processo atual de destruição, decomposição e degeneração da capoeira (primeira hipótese); A segunda hipótese que a Autora levanta é a da destruição das forças produtivas – trabalho, trabalhador, meio ambiente, cultura – dentro do que se localiza a destruição, degeneração, decomposição da capoeira, enquanto uma produção social, historicamente acumulada. A terceira hipótese, é que a maioria dos estudos sobre capoeira faz referência à ética em uma sociedade contraditória e altamente violenta, recorrência esta que necessita ser questionada porque desarticulada do projeto histórico alternativo ao modelo do capital. A quarta hipótese é de que uma nova cultura capoeirana, uma genuína práxis capoeirana, exige sintonia com um novo projeto histórico e será reconhecida na organização do trabalho pedagógico de construção da cultura, com nexos e implicações em uma dada teoria do conhecimento e teoria pedagógica e em um projeto histórico superador do projeto capitalista.

Outro autor, Hajime Nosaki (2004) [8], ao tratar das relações de trabalho no campo profissional da Educação Física, dentro do Sistema CONFEF/CREF apresenta elementos acerca do reordenamento do trabalho do professor de educação física, da regulamentação da profissão e da disputa de projetos históricos. A Regulamentação da profissão veio para “regulamentar a terra de ninguém”. Isto significou que o ensino de todas as praticas corporais, entre as quais a capoeira, passou a ser exclusividade de quem tem a carteira do CONFEF. Ou seja, o desenvolvimento de um relevante bem social, a capoeira, passa a ser propriedade privada da educação física.

Com base na analise do mundo do trabalho são apresentados elementos mediadores entre o movimento mais geral do capital e a especificidade do trabalho na educação física e particularmente a questão da regulamentação da profissão, exigência do mercado do trabalho e, portanto, do capital e sua estratégia de reordenamento para manutenção da hegemonia. São apresentados dados concretos sobre o Conselho Federal de Educação Física, resgatando-se elementos históricos desde as primeiras intenções presentes nas Associações de Professores até a legalização dos Conselhos pela aprovação da Lei 9696/98 que encontrou sua base de sustentação na Lei 9649/98 – principalmente em seu artigo 58 que transforma conselhos profissionais em entidades privadas. Hajime nos apresenta dados sobre a ingerência de tais conselhos juntos aos trabalhadores de educação física, aos trabalhadores de outras áreas, tanto na formação quanto na qualificação. A ação inibidora do Sistema CREF/CONFEF está contribuindo para atacar a cultura e destruí-la, tornando a ação de construção da cultura um monopólio de professores de educação física. Isto diz respeito à reserva de mercado. Com isto some culturas, trabalho, trabalhador.

Engels (1977) [9] em “Do socialismo utópico ao socialismo cientifico” (pg.19) já afirmava:

“Quando nos detemos a pensar sobre a natureza, ou sobre a história humana, ou sobre a nossa própria ati­vidade espiritual, deparamo-nos, em primeiro plano, com a imagem de uma trama infinita de concatenações e in­fluências recíprocas, em que nada permanece o que era, nem como e onde era, mas tudo se move e se transforma nasce e morre.”.

 

A isto está sujeita a capoeira, enquanto pratica, conhecimento, profissão, formação, mercadoria.

Como Taffarel (2004), aceitamos que a capoeira é um dos fenômenos sócio-culturais da alta relevância no Brasil e constitui o processo civilizatório[10], e que hoje: “… está situado dentro da divisão social internacional do trabalho e, portanto, neste momento histórico sofre também o processo de degeneração, decomposição e destruição.” 

Isto é visível quando observamos o empresariamento da capoeira internacionalmente – no sistema de franquias. A mercadorização da capoeira, vista nos empórios e centros turísticos, a espetacularização da capoeira visita na mídia e nos fantasiosos espetáculos. Na esportivização da capoeira, na construção de confederações, federações com finalidades competitivas, necessidade imperiosa do capital.

O que é a Capoeira? Um PRODUTO CULTURAL ou uma MERCADORIA?

 

[1] http://www.blogsoestado.com/leopoldovaz/2013/11/18/cronica-da-capoeiragem-o-que-e-a-capoeira/

[2] PL 7.370/2002 – substitutivo que estabelecia que “Não estão sujeitos à fiscalização dos Conselhos previstos nesta lei os profissionais de dança, capoeira, artes marciais, ioga e método pilates, seus instrutores e academias”. O substitutivo da deputada Alice Portugal aprovado por unanimidade na Comissão de Educação e Cultura  acrescia :” for “praticadas com características desportivas e/ou  com o cunho de exercícios, na busca de condicionamento físico então é atividade de Educação Física … E os seus profissionais devem estar sujeitos às formas da Lei.”; o projeto foi encaminhado à Comissão de Turismo e Desporto, onde o deputado Josué Bengtson (PTB-PA) foi designado relator.

[3] Aprovados em Assembléia Geral de fundação da Federação Internacional de Capoeira – FICA – ocorrida por ocasião do I Congresso Técnico Internacional de Capoeira, realizado nos dias 03, 04, 05 e 06 de junho de 1999 na Cidade de São Paulo, SP, Brasil, revisados na Assembléia Geral Extraordinária ocorrida na Cidade de Lisboa, Portugal, em 02 de julho de 2001 e pelo II Congresso Técnico Internacional de Capoeira, realizado na Cidade de Vitória, ES, Brasil, nos dias 15, 16 e 17 de novembro de 2001

[4] VIEIRA, Sérgio Luiz de Souza. Capoeira. in PEREIRA DA COSTA, Lamartine (org.). ATLAS DE ESPORTES NO BRASIL. Rio de Janeiro : Shape, 2005, p. 39-40.

[5] REIS, Letícia Vidor de Sousa. Capoeira, Corpo e História. In JORNAL DA CAPOEIRA, disponível em www.capoeira.jex.com.br, capturado em 14 de abril de 2005, artigo com base na dissertação de mestrado “Negros e brancos no jogo de capoeira: a reinvenção da tradição” (Reis, 1993).

VIDOR, Elisabeth; REIS, Letícia Vidor de Sousa. CAPOEIRA – herença cultral afro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2013

[6]In JORNAL DA CAPOEIRA, disponível em www.capoeira.jex.com.br, capturado em 14 de abril de 2005. Grifos meus); VIDOR, REIS, 2013, obra citada.

[7] TAFFAREL, Celi Zulke. Capoeira e projeto histórico. In VI SIMPÓSIO NACIONAL UNIVERSITÁRIO DE CAPOEIRA – VI SNUC, Florianópolis-SC – 12, 13 e 14 de novembro 2004, Universidade Federal de Santa Catarina – Temática do evento: Capoeira a Serviço do Social ou do Capital!?

[8] NOZAKY, Hajime. EDUCAÇÃO FÍSICA E REORDENAMENTO NO MUNDO DO TRABALHO: MEDIAÇÕES DA REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO. Tese Doutorado. Universidade Federal Fluminense, 2004.

[9] ENGELS, Friedrich.  Do socialismo utópico ao socialismo cientifico. In MARX, Karl; ENGELS, Friedrich TEXTOS. São Paulo: Edições Sociais, 1977, 6-60. Vol. 1.

[10] ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. DEPORTE Y OCIO EM EL PROCESO DE LA CIVILIZACION. México: Fundo de Cultura Econômica, 1992

 

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