Por: Laércio Elias Pereira
1. Quais são os principais problemas da Educação Física?
Ainda bem que são muitos. Estamos longe do suicídio pelo tédio. Um deles é a reengenharia da piada feita no modelo de profissional de Educação Física: trocamos o professor despreparado, desmotivado e que trabalhava mal com as aulas de "rolar bola",
que as crianças adoravam, pelo professor cheio de pós-graduação, preparado, motivado, que não trabalha ou fica inventando aquecimento com longas corridas em volta da quadra, ou modorrentas aulas teóricas, que as crianças detestam. Outra, e que eu acho principal, é a falta de percepção de que a época do "ensino" (ensignare= passar informação) acabou. Em reunião com colegas professores ou na universidade, gosto de barbarizar com o eslaide: "O ensino morreu no século passado, abraçado com o professor que ’dava aula’ ’, o aluno (a-lumni=sem-luz?),numa ’classe’ de uma linha de montagem(educação em séries), tudo enroscado na grade horária".
O mundo inteiro comemora o falecimento do ensino como foco central da educação, e reconhece o brasileiro Paulo Freire como o mentor dessa mudança de paradigma. No Brasil ainda estamos no maior apego. As teorias meia-bomba ainda falam em ensino-aprendizagem, com receio de largar o osso. Mas, todos voltamos a zero com a mudança de paradigma, como explicou Thomas Khun. A herança patrimonialista que recebemos é pesada e não facilita a situação. Numa cultura em que o chefe é o dono, foi natural o professor se aboletar como o "ensinador", o limite do conhecimento. Em algumas regiões do Brasil, especialmente no Nordeste, ensino é sinônimo de atividade docente. "Minha filha ensina na escola...". Mas, para não desanimar os muitos leitores da Corpoconsciência, podemos lembrar que existem trabalhos sérios e de ótimos resultado na perspectiva da aprendizagem,como a aprendizagem baseada em problemas, que começou na Holanda há mais de 30 anos e hoje se consolida no Brasil (em Londrina, em Marília e em Fortaleza; Mamede, Silvia.mana Aprendizagem Baseada em problemas, Hucitec, 2001 - relato da experiência da Escola de Saúde Pública do Ceará; e www.uel.br/ccs/pbl, um bom hipertexto da medicina da Universidade Estadual de Londrina.
2. Em sua opinião, qual deve ser o objeto de estudo da Educação Física e por que?
Sou suspeito para responder a esta questão, que tem rendido muitos trabalhos acadêmicos, viagens para congressos e pontos no Lattes, na hora da avaliação de publicações. Sou suspeito pela admiração, pela amizade com o Prof. Manuel Sérgio. No tempo em que trabalhava no Maranhão (comecei a ser professor em São Caetano), nos tempos da ditadura, descobri um livro sobre Educação Física escrito por um marxista e intitulado "A prática e a Educação Física (Lisboa, Compendium, s/d). Pedi ajuda para a Maria Lícia Bastos (a quem ajudaria a criar o SIBRADID), e ela encontrou o endereço do professor. Escrevi pra ele e recebi - surpreso e encabulado - resposta gentil e imediata, em que ele falava do seu interesse em dialogar com professores brasileiros. Passei a bola para o João Freire, para a Maria Izabel de Souza Lopes (professora de sociologia da FEFISA na época e hoje pró-reitora da Universidade de Maringá), e para o Lino Castellani, bons no assunto e que cito par a pista da evolução das idéias dele no Brasil. Desde então minha admiração por ele só tem aumentado. Quando vem ao Brasil, ele se submete à crítica dos seus pares filósofos, vai a debates com os Giannotis, não tripudia sobre nós, mortais comuns da Educação Física, como estávamos acostumados com os fisiologistas, médicos e psicólogos, sem trânsito entre seus pares. Em seu livro mais recente -Um corte epistemológico: da Educação Física à motricidade humana (Instituto Piaget, 1999 ), ele faz uma só citação de si mesmo, apesar das duas dezenas
de livros que publicou, o que contrasta como nosso chamado "jabá acadêmico", que os autores abusam da citação dos próprios trabalhos. Motricidade Humana é a minha resposta, pois.
3. Sua posição se contrapõe basicamente a quais tendências ou a quais concepções na área da Educação Física?
Vejo na trincheira do outro lado o pessoal que ainda está com o ensino e não abre, literalmente. Fico tranqüilo porque, com a evolução para o paradigma da aprendizagem, encontraremos respostas, e essa questão abre lugar para outras mais importantes. Não conhecemos 90% das ocupações que serão encaradas por nossos estudantes no século 21. É consenso entre os pesquisadores da Escola do (www.futuro.usp.br> que os principais problemas da educação das crianças não são (só) computador, informação (TV e banca de jornal detonaram o professor ensinador), livros e periódicos. São a fé (religare, sentido para a vida) e a auto-estima.O resto será construído na celebração do trabalho na comunidade formada por professores e estudantes, incluídos aí quem não está matriculado e quem mora longe ou está preso.
É difícil fazer um jogo de contraponto, mas se opõe a todas as correntes que estacionaram no ensino, mesmo as que fingem e vão até o ensino-aprendizagem.Imagine um professor limite do conhecimento que "ensinava" 200 aluno e os mantinha nos trilhos a sua direção com ameaças de nota baixa e reprovação aos que não se submetessem. Quando passa para a aprendizagem, o professor vira um mestre que encontra duzentas histórias de vida, cada um com seu potencial de inteligência (Howard Gardner. As inteligências múltiplas, a teoria na prática. Porto Alegre, Artes Médica, 1995). É um desfio muitíssimo maior e mais rico. Vota a dignificar o professor, a Educação Física volta a ter um papel central na educação, ajudando na socialização nesse ambiente saturado de informação (Lauro de Oliveira Lima)
4. De que maneira o objeto de estudo proposto influencia o ensino da Educação Física?
Vamos deixar o finado ensino em paz.
5. Quais são as conseqüências da adoção desse objeto de estudo para as pesquisas relacionadas com a Educação Física?
O Prof Manuel Sérgio gosta de citar uma aliteração rica, de múltiplos sentidos, que não fica sonoro com Educação Física, mas vou forçar a barra: "quem sabe só Direito, não sabe Direito".
A pesquisa é cada vez mais multi e transdisciplinar, e a prática tem mostrado isso. Isolar, mesmo com o pretexto de estudo, é mais perigoso do que promissor. Tem o relato de um pesquisador famoso, diretor de um importante instituto de pesquisa, feito numa reunião da SBPC. Ele estava entusiasmado com o novo cargo de diretor do instituto. Os vinte pesquisadores sob a sua responsabilidade iam fazer uma revolução no Brasil com seus estudos, que ajudariam nas transformações sociais sonhadas por todos. Quando foi conhecer os pesquisadores, viu que uma pesquisadora tinha como objeto de estudo a vida sexual de um peixe pouco conhecido. Ficou desanimado. Pensou em mandar a mulher embora e contratar alguém da sociologia. Respeitou. Em dois anos, a linha da pesquisa da vida sexual dos peixes evoluiu naturalmente para inter-relações com o ecosistema, a influência na vida das populações ribeirinhas e se tornou a linha de pesquisa de maior relevância social do instituto. Por isso desconfio das delimitações de campo na pesquisa.
No tempo da ditadura oligarco-militar, você era considerado a favor do governo ou comunista, mesmo que não usasse barba. Estávamos os anti-ditadura no mesmo barco, contra tudo o que viesse dos ditadores, da escolarização MEC-USAID ao FMI. Atirávamos o que tivéssemos na mão em qualquer coisa que se mexesse, vindo do lado de lá. Findo o regime, pudemos encarar as nossa (muitas) diferenças em relação à concepção de Educação Física. A partir dos livros do Medina e do Giraldelli, o pessoal começou a estabelecer "correntes" de Educação Física. Isso serviu para os "dacademia", em sua busca para sistematizar os estudos. Para os "de fora", ficou parecendo uma espécie de capitanias hereditárias. Daí voltou o pessoal que aproveitou as turmas de pós-graduação no estrangeiro e a complicação aumentou.
6. O que mudaria no professor de Educação Física?
Nesses doze anos de Escola do Futuro, temos recebido professores estrangeiros, geralmente para o pós-doutorado, nenhum profissional de Educação Física até agora,
mas, todos com a mesma opinião: em qualquer conceito de escola que seja adotado no século XXI, a Educação Física vai voltar o principal animador do processo de socialização da escola. Vamos ter outros olhos sobre a crítica que fazíamos de que o professor de Educação Física era chamado para fazer tudo, da fanfarra à quermesse, o bingo, a biblioteca, justo na década perdida dos 80, em que a gente queria ter ensino e nota baixos, para ficar igual às outras Unidades de Aprendizagem (que no século passado eram chamada carinhosamente de "disciplinas". Os professores e professoras eram - e ainda são - chamados por causa da liderança, da proximidade com os estudantes, porque trabalham mais com valores humanos do que com a mera informação copiada. Com o Centro Esportivo Virtual tento ajudar nesse novo momento de liderança do profissional de Educação Física na escola, na academia, no prédio, na fábrica, no hotel, no hospital... em qualquer lugar em que ele esteja liderando um importante processo de socialização sempre num rico, alegre e ético ambiente de aprendizagem.
7. Você tem mais alguma coisa a dizer sobre o objeto de estudo da Educação Física ou algo relacionado a esse assunto?
Gostaria de encerrar reafirmando uma boa notícia e alertando para uma má. A boa: temos tudo para recuperar nosso status de mestres, no novo momento. Os estudiosos do futuro da Educação apostam nisso. Todas as inteligências postuladas por Gadner, destronando o antigo QI, que contemplava apenas a inteligência lógico-matemática
e a lingüística, têm tudo a ver com a Educação Física: interpessoal, intrapessoal, espacial, corporal-cinestésica... A má: nossos velhos currículos (é de espantar a pouca diferença existente entre o primeiro, da Universidade do Brasil, de 1939, e o atual) não estão preparando profissionais para essa nobre missão. Gardner cita o exemplo de inteligência corporal Marcel Marceau. Rarísimos cursos tratam a mímica. Não temos grupos de teatro (gostaria de ser desmentido aqui). Na maioria dos nossos cursos estamos dando razão à provocação de que a Educação Física poderia ser um curso de segundo grau. O índice de leitura é baixíssimo! Revistas técnicas e científicas, poucas,têm tiragem de mil a três mil exemplares,para uma comunidade de estudantes estimada por baixo em 200 mil.Boa parte dessa população não faz o mínimo, que é assinar pelo menos um periódico de sua especialidade, e poucos são filiados a uma sociedade científica como a SBPC ou o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte. Claro que temos potencial para reverter isso. Alguns dos insumos de nossas atividades são o exercício da liderança e da solidariedade. Não podemos nos acomodar.
Devo registrar que sou otimista e acredito ns mudanças na Educação Física, e nesses tempos difíceis gostaria de prestar uma homenagem terminando com o alerta de u provérbio árabe: "Alá olha por nós, mas é bom amarrar o camelo"
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