Se eu fosse corredor…
Gostaria de correr para a frente, atrás dos sonhos e dos ideais, procurando fugir da conformidade à baixeza e vileza e tentando, o mais que pudesse, escapar às ciladas, chantagens, pressões, aleivosias, calúnias e difamações montadas atrás de mim.
Subiria ao alto dos montes para conhecer e saborear a ascensão e a leveza, para oxigenar a alma e para experimentar a altura e a atracção do céu. Mas também correria nas planícies e vales para me sentir preso ao barro da terra, para nela fincar os pés, firmar as minhas raízes e com ela estabelecer compromissos de realização, exaltação e sublimação da condição humana.
Correria, sem reservas, nas ruas das cidades, para me aproximar do outro que é constitutivo da minha existência e identidade, da minha missão e felicidade. E para dar, assim, à singularidade e pequenez do meu tamanho, da minha aldeia e localidade feições e modos de urbanidade, sentidos e desejos de universalidade.
Correria, igualmente alegre e lesto, nas margens do mar, para cultivar o fascínio pela lonjura e pela distância, pela largueza e abrangência dos horizontes e por tudo quanto mora nos lugares não enxergados pela minha curta visão.
Correria nos campos e florestas, por entre árvores e ervas, ouvindo o chilrear dos pássaros nas horas matinais, saltando regatos, equilibrando-me em brejos escorregadios e vendo furtivos animais, sopesando a natureza com a bitola dos princípios e valores humanistas e civilizacionais.
Correria movido pela fé de que, se corresse deste jeito, por certo encontraria ao meu lado companheiros, romeiros, peregrinos sempre prontos a estender-me a mão, a palavra, a água e o gesto da solidariedade e compreensão, da entreajuda e da estimulação. Quem sabe, descobriria que o competidor não é meu inimigo nem autor de encarniçada oposição, mas antes meu aliado e irmão, apostado na obtenção de um feito resultante da desafiante cooperação.
De quando em vez pararia, para medir o caminho andado e o chão pisado, para limpar o suor dos olhos e da face, para encher o peito de ar e o coração de alento. Para redobrar a passada e a determinação de seguir o rumo do meu destino: o de ser homem corredor, solto de peias nos pés, na vontade e na acção de me cumprir e de dar formas de asas à obrigação da liberdade.
Em suma, se eu fosse corredor, seria um andarilho que atravessa os dias em passo estugado, para celebrar o encontro com a paixão e dignidade da vida conquistada. Afinal esta, disse um poeta, são deveres que trouxemos para fazer em casa, numa corrida contra o tédio e todo o tipo de rendição.
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