TEMPO LIVRE, LAZER E PLANEJAMENTO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
por LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ
Sobre caracóis e tecnologia:
O caracol tem sua concha de tal tamanho que lhe permite nela viver enquanto precise e ao mesmo tempo pode transportá-la a todos os lugares que lhe convém. Se a concha do caracol fosse dez ou vinte vezes maior que o necessário para suas necessidades, o animal pereceria, uma vez que não teria forças, nem capacidade para, com ela, transladar-se em busca de alimentos e de companhia, a menos que conseguisse desenvolver ao mesmo tempo seu cérebro, musculatura e coração de tal forma que o permitisse ajustar-se às complexidades relacionadas com esta nova situação.
Ao se tratar do planejamento da Educação Física surgem problemas decorrentes da adequação do local e de material disponíveis para o desenvolvimento das atividades propostas. Se o planejamento não estiver adequado às situações que se apresentarem, vive-se uma situação parecida com a do caracol.
O planejamento deve prever todas as situações possíveis para o desenvolvimento das atividades. As propostas apresentadas decorrem de três aspectos a serem levados em conta:
- Unidade de ensino em que existem locais adequados para a prática da Educação Física;
- Unidade de ensino em que existem espaços para realizar atividades, mas esses espaços não são adequados para a prática da Educação Física;
- Unidades de ensino em que não existem espaços nem locais, adequados ou não, para a prática da Educação Física.
Diante destes fatos, o planejamento deve prever atividades condizentes com o espaço existente, adequados ou não. Para o caso de unidades correspondentes ao item dois, têm-se previsto Atividades de Lazer, com o objetivo de “ocupar o tempo ocioso”.
Apresenta-se, assim, a preocupação de simples “ocupação do tempo letivo“, esquecendo-se que a Educação Física deve ser vista como “um elemento de expressão individual e de integração social” (1,2).
Ao se propor a utilização do Lazer como forma de “ocupação do tempo ocioso”, em substituição à prática da Educação Física, algumas questões têm que ser discutidas. A primeira delas é a aceitação da Educação Física enquanto disciplina curricular, numa “sociedade que atrofia o físico e afasta o homem da natureza, esquecendo-se que o homem precisa educar sua liberdade para desfrutá-la naquele tempo que, por oposição ao tempo de trabalho produtivo, se chama livre” (3), e não ocioso.
Torna-se imprescindível uma retomada dos objetivos visados pela escola e a orientação de uma variedade de meios para atingí-los. Planejar e orientar as atividades de lazer na escola, de maneira a estabecer critérios de seleção daquelas atividades, considerando as condições peculiares de cada unidade, a variedade de interesses e necessidades dos seus alunos também é imprescindível para a busca do ponto de equilíbrio entre “disciplina e prazer” (3,4).
Propor mudanças nos currículos escolares – lazer no lugar de educação física – pode trazer algumas dificuldades:
- o de colocar títulos novos em antigas atividades, sem mudanças na prática dos educadores;
- o de dar atenção demasiada às práticas do lazer, conduzindo a educação para o lazer a um simples estímulo às tendências de massa, que muitas vezes são ditadas por interesses irresponsáveis;
- ter cuidado em invocar o lazer para solucionar problemas da educação.
O problema parece estar no fato de se saber até onde os educadores devem ir ao preparar as pessoas para o tempo livre.
Tempo livre e lazer:
Embora pareça uma proposta nova, não é de agora que a Educação Física se refere ao tempo livre. Em fins do século passado e início deste, a mobilização de grandes massas de jovens e adultos, através de campanhas de recreação, serviram de base para uma educação extra-escolar, sendo incluída, nesse movimento, a Educação Física (5).
O lazer tomou a dimensão de hoje após a Revolução Industrial, quando então a jornada de trabalho começou a diminuir paulatinamente, muito embora os fundamentos do lazer sejam anteriores à sociedade industrial, porque sempre existiu o trabalho e o não-trabalho, em qualquer sociedade (6).
A conquista de oito horas de trabalho, oito horas de descanso e oito horas de lazer marcou o início da humanização do trabalho e transformou a recreação e o lazer em um fato social (6,7,8,9). Com o reconhecimento das horas livres entre uma e outra jornada de trabalho, dos repousos semanais remunerados, das férias anuais e da cessação da vida de trabalho (aposentadoria) (10,11), gerou-se, então, tempo de lazer compulsório (7,8).
Aristóteles afirmava que o tempo livre não é o final do trabalho; é o trabalho que limita o tempo livre. Este deve consagrar-se à arte, à ciência e, preferentemente, à filosofia (12):
“A palavra grega para indicar o tempo livre é, a propósito, significativa e perturba a relação que nos é familiar entre o termo e o sentido que se lhe atribui correntemente. Scholé – traduz o dicionário – significa tempo livre, parada, descanso, ócio, falta de trabalho, pausa, ocupação das horas que se tornam livres do trabalho e dos negócios, estudo, conversação e acaba por significar ‘o lugar onde se utiliza este tempo livre’, a scholé precisamente, a escola, que hoje se interpreta somente como o lugar no qual o tempo livre é utilizado para ensinar e aprender”. (12, p. 9).
As dificuldades decorrentes da industrialização e da formação de concentrações urbanas, além do esvaziamento da zona rural, gerando imensos problemas, servem de incentivo para a formação de grupos, que se preocupam com o aproveitamento adequado das horas livres para atividades de lazer (5).
Numa análise das atividades de lazer na civilização industrial, seguindo o pensamento de Jean-Marie BROHN, CAVALCANTI (1981, p. 310) apresenta-nos dois pontos de vista: um, econômico, que vê as atividades de lazer como uma exigência da sociedade capitalista, ressaltando os aspectos da compensação e de ajustamento; o outro, político, visto sob o ponto de vista de “fuga da realidade” quando o sistema promove atividades físicas de lazer para preservar a capacidade do indivíduo para o trabalho, destacando que as atividades de tempo livre, na realidade, constituem a melhor maneira de “neutralizar intelectualmente as massas”:
“Considerar tempo para o lazer um tempo ‘socialmente’ permitido após o cumprimento de todas as obrigações do indivíduo para com a sociedade não é levar em consideração que a maioria das atividades sociais do indivíduo, principalmente as de ordem profissional, são deficitárias no que diz respeito à saúde -‘bem estar total, físico e social’. Se o sistema usufrui da força de trabalho do indivíduo por que não se responsabiliza diretamente por essa recuperação?”. (p. 311).
A falta de habilidade apropriada para a utilização do lazer é lembrada por Robert MacIVER (appud REQUIXA, 1976), quando diz:
“Para muitos homens, o trabalho tornou-se uma rotina não muito onerosa, não muito compensadora, e de forma alguma absorvente – uma rotina diária até que a sineta toque e os torne novamente livres. Mas livres para que ? É uma libertação maravilhosa para aquelesque aprenderam a usa-lá; há muitas formas de fazê-la. Mas é um grande vazio para aqueles que no aprenderam a usá-la“. (p.15).
LeBOUCH (1983) destaca a importância da aprendizagem psicomotora durante a escolaridade secundária “ com vistas à inserção social do futuro adulto”, destacando os problemas atuais de adaptação de mão-de-obra evidenciada na carência da formação física dos jovens (p.23). Mais adiante, no plano da preparação para o lazer, destaca que a organização do trabalho, ligada ao progresso dos métodos e ao progresso da mecanização, cria necessidade de descontração de um lado e, por outro lado, de lazeres que as satisfaçam.
Perspectiva recreativa da educação física escolar:
Enquanto a Educação Física é conhecida como atividade escolar, a educação para a saúde e a educação para o tempo livre ainda não são aceitas como tal. Isto dá oportunidade ao Professor de Educação Física para considerar assuntos relativos ao tempo livre e à saúde no ensino do esporte, isto é, pode levar o lazer e a saúde em relação ao esporte. Cabe assinalar, então, que o tempo livre e a saúde abrangem ainda outros aspectos, além do esportivo, como por exemplo, o das artes em relação ao lazer e o da alimentação com relação à saúde. (14).
Para esclarecer a relação entre esporte e tempo livre, HAAG (1981) analisa o que entendemos por esporte. “A palavra provém do verbo latino ‘deportare’, distrair-se, e logo se substantivou em francês e inglês na forma de ‘desport’ ou ‘sport’, o que significa diversão” (p.91).
Apoiando-se neste conceito, o lúdico aparece como sua característica básica, visto que:
“O termo tinha, então, a conotação de prazer, divertimento, descanso. E, apesar das diversas nuances que o esporte assumiu ao longo do nosso século, as pessoas continuam fieis ao seu sentido original, na medida em que o esporte será sempre um jogo, antes de mais nada”. (15, p.75).
Dessa forma, o processo ensino-aprendizagem da educação física deve se apoiar na ludicidade (16,17), encontrando espaço significativo para a aplicação do jogo, elemento fundamental da cultura humana (17,18,19) à importância que se dá ao resultado esportivo de alto nível.
MOREIRA (1985), ao analisar o conceito de lazer de Joffre DUMAZEDIER, quando discute ” a educação física definindo uma forma de lazer”, considera a função do “desenvolvimento da personalidade” como a que deverá ocupar um espaço preponderante na utilização do lazer nas aulas de Educação Física, revertendo as funções de descanso e divertimento “de seu papel educativo-consciente” onde espera, dessa forma, que ” o lazer possa se transformar em aprendizagem voluntária e prática de uma conduta criadora, em se tratando de execução de atividade física” (p.27).
LeBOUCH (1983), citando FRIEDMAN, afirma que:
“A preparação para um lazer mais rico é uma questão pedagógica ou, num sentido mais amplo, de formação, e não dos menores. A nossa civilização tecnológica exige que ao assumir a nobre função de educar na plenitude do termo o cidadão, a escola esteja em todos os níveis preocupada em prepará-lo não apenas para o trabalho, mas também e cada vez mais para o lazer”. (p. 23).
MOREIRA (1985), como LeBOUCH (1983), destaca o aspecto do aperfeiçoamento pessoal, pois além de representar uma simples distração ou uma forma de compensar a sedentariedade, as atividades ao ar livre e determinadas atividades estéticas à base da expressão corporal, podem também tornarem-se verdadeiras atividades culturais.
OLIVEIRA (1985) considera que a educação física escolar ressente-se de uma fundamentação filosófica que a oriente em direção às suas finalidades educativas, impedindo que ela, educação física, transforme-se ” em uma máquina de não fazer nada”. Citando a obra de Celestino F. M. PEREIRA, faz uma análise da educação física contemporânea, onde destaca as orientações que esta vem assumindo diante do problema de formação da juventude. Considera, entre outras,
“a concepção utilitária social da educação física”, devido à importância que o aspecto recreativo assume na sociedade moderna, “na medida em que a industrialização tendeu a privar o homem de seus gestos naturais, aparecendo a necessidade de ocupação do tempo livre”.
Conclusão:
A educação para o lazer é uma tarefa difícil. Significa educar a criança a ser ela mesma, ser autônoma, auto realizadora (3). O método de ensino adequado para ensinar a gostar de fazer coisas, não para apresentação exterior e sim por satisfação é o modelo que envolve a aprendizagem pela descoberta, com as vantagens de ensinar a compreender o todo e a possibilidade de permitir uma participação ativa do aluno, de maneira que ele se veja estimulado a solucionar problemas práticos.
O desenvolvimento de metodologias que estimulem a criatividade e o trabalho independentes (17,19,22) leva-nos a preconizar uma educação física voltada para os princípios da uma educação permanente, com base no esforço comunitário, em substituição à tônica da aptidão física, presente na década passada (23).
Assim, “a Educação para o Tempo Livre” se constitui num caminho a seguir, buscando seus fundamentos filosóficos na concepção utilitária e social (PEREIRA, apud OLIVEIRA, 1985; VAZ, 1987), onde a esfera do lazer possa ser tão produtiva e valiosa quanto a esfera do trabalho.
Sem perder de vista o disposto na legislação vigente, no que tange à educação física, a escola deve atender às necessidades, interesses e motivações de seus alunos, onde o aspecto do lazer deve ser levado em consideração quando do planejamento das atividades a serem desenvolvidas, pois trabalho e tempo livre, tal como a educação intelectual e a educação física, não podem ser consideradas partes separadas de nossas vidas.
Referências bibliográficas:
1- EMERENCIANO, M.S.J. Preparação para o trabalho. Brasília : EC/SEPS, 1984.
2- BRUM, E.F.F. & OUTROS. Educação Física. in O artigo 7º na Lei 5692/71 no ensino do 2º grau. Brasília : MEC/DEM, 1978, p. 31- 41.
3- GAELZER, L . Ensaio à liberdade: uma introdução à educação para o tempo livre. Porto Alegre: Original do autor, 1985.
4- MARCELLINO, N.C. Lazer e educação. Campinas : Papirus, 1987
5- TOLKMITT, H.C. Sugestões alternativas para a filosofia do Ensino. Comunidade Esportiva. n.35, p. 2-8, nov-dez. 1985.
6- CAVALCANTI, K.B. A função cultural do esporte e suas ambigüidades sociais. in PEREIRA DA COSTA, L. (ORG). Teoria e prática do esporte comunitário e de massa. Rio de Janeiro : Palestra, 1981, p. 301.316.
7- MARINHO, I.P. Raízes etmológicas, históricas e jurídicas do lazer. Brasília : (s.e.), 1979.
8- _______. Introdução ao estudo da filosofia da educação física e do desporto.Brasília : Horizonte, 1984.
9- CUNHA, N. A felicidade imaginada: a negação do trabalho e do lazer. São Paulo : Brasiliense,1987.
10- REQUIXA, R. As dimensões sociais do lazer São Paulo : SESC, 1969.
11- __________. Trabalho e lazer. in ________. As dimensões sociais do lazer. São Paulo, SESC,1976.
12- TOTI, G. Tiempo livre y explotacion capitalista. México: Cultura Popular, 1975.
13- LeBOUCH, J. A educação pelo movimento: a educação psicosinética na idade escolar. Porto Alegre : Artes Médicas, 1983
14- HAAG, H. Deport y tiempo libre. in KOCH, K. Hacia una ciência del deporte. Buenos Aires :Kapelusz, 1981.
15- OLIVEIRA, V.M. O que é educação física ? São Paulo : Brasiliense, 1983.
16- THOMAZ, F.M. A revolução metodológica da educação física. Comunidade Esportiva, n. 14, p. 2 – 4, maio-junho, 1981.
17- SANTIN, S. Educação física: uma abordagem filosófica da corporeidade. Ijuí : INIJUÍ ED.1987.
18- HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura humana. São Paulo : Perspectiva, 1971.
19- ESCOBAR, M.O. & TAFFAREL, C.N.Z. Metodologia esportiva e psicomotricidade. Recife : Gráfica Recife, 1987.
20- MOREIRA, W.W. Prática da educação física na universidade. Campinas : UNICAMP,1985.
21- OLIVEIRA, V.M. Educação física humanística. Rio de Janeiro : Ao Livro Técnico, 1985.
22- BRESSANE, R. Uma nova maneira de pensar educação física. Comunidade Esportiva, v. 23, p. 3-7, maio-abr., 1983.
23- VAZ, L.G.D. Concepção utilitária da Educação Física. São Luís : UFMA, 1987. (Monografia de Especialização em Recreação e Lazer).
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