Resumo
Este trabalho possui como premissa a hipótese de que o currículo das disciplinas escolares nas últimas décadas passa por um processo de mudança no qual as forças externas, caracterizadas por grupos políticos e de interesse comercial, se sobrepõem às internas, compostas por tradições acadêmicas. O termo “currículo” é adotado em uma concepção não restrita a documentos reguladores, mas a todos os aspectos que atravessam o espaço-tempo escolar e que se relacionam com a realidade sociopolítica, histórica, econômica e cultural mais ampla. Os currículos escolares, portanto, alinham-se a um discurso neoliberal que não se reduz a um regime econômico, pois abrange todos os aspectos da vida, que é ressignificada pela razão do mercado. Ao considerar que a Educação Física escolar se enquadra nesse paradigma, o objetivo desta tese é investigar o processo de mudança curricular nessa disciplina escolar no qual uma racionalidade neoliberal se encarrega de estabelecer as normas para um novo sentido de currículo, pautado, principalmente, em referenciais provenientes de uma lógica mercadológica. Para tal, divide-se em quatro capítulos complementares, apresentados em forma de artigo. O primeiro capítulo destaca o pano de fundo de uma “governamentalidade” neoliberal que incide sobre o currículo da Educação Física por meio da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Fundamental. O segundo capítulo investiga a relação entre a Educação Física e o “filantrocapitalismo”, estratégia de intervenção do mercado no setor público. Analisa e desnaturaliza uma narrativa neoliberal produzida por uma instituição filantrópica que atua nessa disciplina escolar, o “Time Impulsiona”, ao propagar ideais performáticos, esportivizantes, acríticos, tecnocráticos e neo-higiênicos. O terceiro capítulo se debruça sobre a inserção da Educação Física no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) nos anos de 2019 e 2020, após a aprovação de manuais do professor nesse programa. Demonstra, por meio da análise da coleção de Educação Física de maior representatividade no PNLD, como esses manuais corporificam as reformas neoliberais de currículo ao adotarem estratégias de roteirização alinhadas à BNCC. O quarto e último capítulo retoma a discussão sobre o sentido de currículo da BNCC, que se propaga em outros dispositivos curriculares na Educação Física e que fabricam subjetividades performáticas e cosmopolitas. Desse modo, esse capítulo reflete sobre as possibilidades de liberação em prol de uma Educação Física não essencialista e não salvacionista, ou – como preferimos – de um currículo afirmativo para uma Educação Física não fascista. A partir do quadro apresentado, esta tese defende que a Educação Física escolar está inserida em um processo de transição no qual o discurso neoliberal atravessa seu currículo e se apodera vertiginosamente da concepção dessa disciplina escolar.